quinta-feira, 31 de outubro de 2013

A relação entre Comunicação, Espectador e Dança - Texto 01


por Igor Gasparini

A dança possui uma história e, como toda história, pode e está sempre sendo reescrita, uma vez que não se apoia em definições dicionarizadas e consensuais sobre como devem ser relatados cada um de seus acontecimentos. Um exemplo: em 2011, Jennifer Homans lançou Apollo’s Angel, pela editora Random House, livro sobre a história do balé que se tornou polêmico por profetizar a sua extinção, dadas as circunstâncias atuais de sua produção. Ou seja, a comunicação do balé com o seu público enfrenta um risco tão sério que ameaça a sua permanência, segundo a autora – o que deixa claro que nenhuma forma de comunicação fica assegurada para sempre, nem o balé, sempre apresentado, na dança, como uma referência perene.


(Espetáculo Tempo - T.F.Style Cia de Dança)


Esse dado importa bastante quando se leva em conta a tendência de atribuir dificuldade de comunicação somente para as linguagens artísticas da arte contemporânea. Parece mais complicado lidar com a produção contemporânea porque nela ocorre uma grande liberdade de criação, que produz uma diversidade enorme de propostas convivendo nas suas diferentes abordagens. Todavia, mesmo variando muito, todas elas ficam reunidas sob uma mesma denominação - no caso da dança, a de dança contemporânea. O que importa salientar aqui é que existe uma pluralidade de manifestações distintas que se reúne debaixo do mesmo nome, e isso já se constitui um aspecto da dificuldade da sua comunicação.

Denise da Costa Oliveira Siqueira, professora e pesquisadora da Faculdade de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em seu livro Corpo, comunicação e cultura – a dança contemporânea em cena, defende que a dança cênica, especificamente, por seu caráter organizado, se estabelece como código não-verbal que, através de movimentos, gestos, e recursos como figurino, cenário e iluminação, transmite mensagens ao espectador, sem necessariamente fazer o uso de palavras.

“Faz-se necessário entender que, como arte, a dança pode usar o ruído como recurso de transgressão. Em arte, uma ‘falha de comunicação’ pode significar comunicação também, transcendendo o aparente ‘erro’. Pode ser intenção do artista inviabilizar ou dificultar o entendimento para mexer com a plateia, para fazer o público refletir ou sair de sua posição de assistência para uma posição mais participativa. O trabalho artístico não precisa necessariamente se fazer compreender totalmente – pode ser ambíguo, passível de variadas interpretações, inacabado como um work in progress. Nesse sentido, paradoxalmente, a não-comunicação é também comunicação” (SIQUEIRA, 2006, p. 31 e 32).


(Espetáculo Tempo - T.F.Style Cia de Dança)


Aqui existe algo importante a ser destacado: o fato de que o que parece não ser comunicação, ainda o é, mesmo diferenciando-se do que habitualmente se consagra como comunicação. Dependendo da intenção do coreógrafo, uma pausa, a ausência coreográfica, o silêncio, pode significar distintas “vontades comunicativas”, incluindo o incômodo que isso pode causar no próprio público.

Rudolf von Laban, um dos principais teóricos da dança e que se dedicou à sistematização da linguagem do movimento, defende:

“a dança como composição de movimento pode ser comparada à linguagem oral. Assim como as palavras são formadas por letras, os movimentos são formados por elementos; assim como as orações são compostas de palavras, as frases da dança são compostas de movimento. Esta linguagem de movimento, de acordo com seu conteúdo, estimula a atividade mental de maneira semelhante, e talvez até mais complexa que a da palavra falada” (LABAN, 1990, p. 31).
           
            Há que tomar cuidado com a leitura do que Laban propõe. Sua comparação entre dança e linguagem oral não pressupõe que ambas compartilhem a mesma forma de comunicação, pois indica somente que ambas comunicam. Vale se deter ao trecho final da citação em que diz que a dança (“linguagem de movimento”) estimula “a atividade mental de maneira semelhante, e talvez até mais complexa que a da palavra falada”.

            Ao tratar do contexto do espetáculo de dança, haveria a necessidade de existir uma linguagem compartilhada entre artista e público para garantir a comunicação? Em arte, e mais especificamente na dança, de qual comunicação se trata? A realidade é que ao lidar com linguagens artísticas, não se sucede o mesmo tipo de comunicação referente à linguagem verbal. Linguagens de naturezas distintas implicam em comunicação de natureza distinta. Na comunicação entre obra e público, algo é comunicado, mas o entendimento não é da mesma ordem do entendimento que se espera da linguagem verbal. Em arte, um mesmo objeto pode suscitar possibilidades distintas de entendimento. “A linguagem não é uma mera convenção, mas sim, um produto da prática social, que surge e se desenvolve historicamente no contexto da práxis vital de uma comunidade”, afirma RÜDIGER (2004, p. 83).

Se toda linguagem nasce de convenções e práticas sociais, como lidar com uma linguagem artística como a da dança, sem contextualizar as suas convenções e práticas sociais? Isso significa que também a comunicação na dança vai depender do contexto no qual se dá e das práticas sociais vigentes nesse contexto. É natural, portanto, que se parta da compreensão de que alguém com familiaridade com a linguagem artística com a qual entra em contato e aquele sem familiaridade manterão diferentes formas de comunicação com o mesmo objeto, pois estão em contextos diferentes.


O entendimento de público como um conjunto de seres indiferenciados continua sendo usado e pode ser identificado, por exemplo, nos programas de “formação de público”. Tais programas são entendidos, de modo geral, como uma ação de apresentar obras a quem não tem acesso a elas – a esse “público” que precisa ser “formado”. Não à toa, não surtem o efeito desejado. Ainda assim, acredito que possam suscitar efeitos positivos quanto ao acesso à arte e ao entretenimento, o que é válido pensando na realidade de exclusão que muitos estão inseridos.
(Espetáculo Tempo - T.F.Style Cia de Dança)



Referências:

LABAN, R. V. Dança educativa moderna. São Paulo: Ícone, 1990.

RÜDIGER, F. Introdução à Teoria da Comunicação: problemas, correntes e autores. 2a. ed. São Paulo: Edicon, 2004.

SIQUEIRA, D. D. C. O. Corpo, Comunicação e Cultura: a dança contemporânea em cena. Campinas: Autores Associados, 2006.

Capítulo 01 da Monografia “A comunicação entre dança e público: O papel do coreógrafo e do jornalismo cultural na construção da relação obra-espectador”, defendida para obtenção de título de Pós-Graduação em Jornalismo Cultural pela PUC-SP.


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