por Igor Gasparini
A dança possui uma história e, como toda história, pode e
está sempre sendo reescrita, uma vez que não se apoia em definições
dicionarizadas e consensuais sobre como devem ser relatados cada um de seus
acontecimentos. Um exemplo: em 2011, Jennifer Homans lançou Apollo’s Angel, pela editora Random House, livro sobre a história
do balé que se tornou polêmico por profetizar a sua extinção, dadas as
circunstâncias atuais de sua produção. Ou seja, a comunicação do balé com o seu
público enfrenta um risco tão sério que ameaça a sua permanência, segundo a
autora – o que deixa claro que nenhuma forma de comunicação fica assegurada
para sempre, nem o balé, sempre apresentado, na dança, como uma referência
perene.
(Espetáculo Tempo - T.F.Style Cia de Dança)
Esse dado importa bastante quando se leva em conta a
tendência de atribuir dificuldade de comunicação somente para as linguagens
artísticas da arte contemporânea. Parece mais complicado lidar com a produção
contemporânea porque nela ocorre uma grande liberdade de criação, que produz uma
diversidade enorme de propostas convivendo nas suas diferentes abordagens.
Todavia, mesmo variando muito, todas elas ficam reunidas sob uma mesma denominação
- no caso da dança, a de dança contemporânea. O que importa salientar aqui é
que existe uma pluralidade de manifestações distintas que se reúne debaixo do
mesmo nome, e isso já se constitui um aspecto da dificuldade da sua comunicação.
Denise da Costa Oliveira Siqueira, professora e pesquisadora
da Faculdade de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
em seu livro Corpo, comunicação e cultura
– a dança contemporânea em cena, defende que a dança cênica,
especificamente, por seu caráter organizado, se estabelece como código não-verbal
que, através de movimentos, gestos, e recursos como figurino, cenário e
iluminação, transmite mensagens ao espectador, sem necessariamente fazer o uso
de palavras.
“Faz-se necessário entender que, como
arte, a dança pode usar o ruído como recurso de transgressão. Em arte, uma
‘falha de comunicação’ pode significar comunicação também, transcendendo o
aparente ‘erro’. Pode ser intenção do artista inviabilizar ou dificultar o
entendimento para mexer com a plateia, para fazer o público refletir ou sair de
sua posição de assistência para uma posição mais participativa. O trabalho
artístico não precisa necessariamente se fazer compreender totalmente – pode
ser ambíguo, passível de variadas interpretações, inacabado como um work in progress. Nesse sentido, paradoxalmente,
a não-comunicação é também comunicação” (SIQUEIRA, 2006, p. 31 e 32).
(Espetáculo Tempo - T.F.Style Cia de Dança)
Aqui existe algo importante a ser destacado: o fato de que o
que parece não ser comunicação, ainda o é, mesmo diferenciando-se do que
habitualmente se consagra como comunicação. Dependendo da intenção do
coreógrafo, uma pausa, a ausência coreográfica, o silêncio, pode significar
distintas “vontades comunicativas”, incluindo o incômodo que isso pode causar
no próprio público.
Rudolf von Laban, um dos principais teóricos da dança e que
se dedicou à sistematização da linguagem do movimento, defende:
“a dança como composição de movimento
pode ser comparada à linguagem oral. Assim como as palavras são formadas por
letras, os movimentos são formados por elementos; assim como as orações são
compostas de palavras, as frases da dança são compostas de movimento. Esta
linguagem de movimento, de acordo com seu conteúdo, estimula a atividade mental
de maneira semelhante, e talvez até
mais complexa que a da palavra falada” (LABAN, 1990, p. 31).
Há que tomar cuidado com a leitura
do que Laban propõe. Sua comparação entre dança e linguagem oral não pressupõe
que ambas compartilhem a mesma forma de comunicação, pois indica somente que
ambas comunicam. Vale se deter ao trecho final da citação em que diz que a
dança (“linguagem de movimento”) estimula “a atividade mental de maneira
semelhante, e talvez até mais complexa que a da palavra falada”.
Ao tratar do contexto do espetáculo
de dança, haveria a necessidade de existir uma linguagem compartilhada entre
artista e público para garantir a comunicação? Em arte, e mais especificamente
na dança, de qual comunicação se trata? A realidade é que ao lidar com
linguagens artísticas, não se sucede o mesmo tipo de comunicação referente à
linguagem verbal. Linguagens de naturezas distintas implicam em comunicação de
natureza distinta. Na comunicação entre obra e público, algo é comunicado, mas
o entendimento não é da mesma ordem do entendimento que se espera da linguagem
verbal. Em arte, um mesmo objeto pode suscitar possibilidades distintas de
entendimento. “A linguagem não é uma mera convenção, mas sim, um produto da
prática social, que surge e se desenvolve historicamente no contexto da práxis
vital de uma comunidade”, afirma RÜDIGER (2004, p. 83).
Se toda linguagem nasce de convenções e práticas sociais,
como lidar com uma linguagem artística como a da dança, sem contextualizar as
suas convenções e práticas sociais? Isso significa que também a comunicação na
dança vai depender do contexto no qual se dá e das práticas sociais vigentes
nesse contexto. É natural, portanto, que se parta da compreensão de que alguém
com familiaridade com a linguagem artística com a qual entra em contato e
aquele sem familiaridade manterão diferentes formas de comunicação com o mesmo
objeto, pois estão em contextos diferentes.
O entendimento de público como um conjunto de seres
indiferenciados continua sendo usado e pode ser identificado, por exemplo, nos
programas de “formação de público”. Tais programas são entendidos, de modo
geral, como uma ação de apresentar obras a quem não tem acesso a elas – a esse
“público” que precisa ser “formado”. Não à toa, não surtem o efeito desejado.
Ainda assim, acredito que possam suscitar efeitos positivos quanto ao acesso à
arte e ao entretenimento, o que é válido pensando na realidade de exclusão que
muitos estão inseridos.
(Espetáculo Tempo - T.F.Style Cia de Dança)
Referências:
LABAN, R. V. Dança educativa moderna. São Paulo:
Ícone, 1990.
RÜDIGER, F. Introdução à Teoria da Comunicação:
problemas, correntes e autores. 2a. ed. São Paulo: Edicon, 2004.
SIQUEIRA, D. D. C. O. Corpo, Comunicação e Cultura: a
dança contemporânea em cena. Campinas: Autores Associados, 2006.
Capítulo 01 da Monografia “A comunicação entre dança e público: O papel do coreógrafo e do jornalismo cultural na construção da relação obra-espectador”, defendida para obtenção de título de Pós-Graduação em Jornalismo Cultural pela PUC-SP.
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