sábado, 18 de julho de 2020

Pelas sombras e pelos sons... Do subterrâneo para a superfície


Por Igor Gasparini

                Este texto busca apresentar reflexões e ecoar algumas vozes sobre o trabalho Subterrâneo, do Gumboot Dance Brasil, dirigido por Rubens Oliveira e que teve sua estreia no fim do mês de março no Teatro Anchieta, do SESC Consolação. Diversos são os aspectos que merecem destaque nesta obra, especialmente, no que tange à essência do trabalho de corpo, com ênfase na própria dança Gumboot de matrizes africanas, muito bem interpretada pelos artistas do núcleo.


A energia contagiante, característica marcante do grupo já em trabalho anterior, arrebata o público que, mesmo antes de terminar, aplaude calorosamente a cada transição de cena. Esta é a grande contribuição da companhia de dança: apresentar a dança negra, de uma matriz africana pouco conhecida por aqui, e com uma energia que faz com que o público se sinta extasiado, contemplado, feliz.

“Ouvimos repetidas vezes do público que, conseguimos levá-los ao fundo da terra, que sentiram no peito a vibração e a força da dança, trazendo risos, choros, dor e alegria”, afirma Rubens Oliveira, diretor e coreógrafo da companhia. Esta proximidade do público fica evidente também na quantidade de pessoas que assistiram à Subterrâneo e lotaram o teatro por duas semanas, algo que merece destaque, dada a dificuldade de encontrar plateias numerosas em espetáculos de dança independente. Realço também o bom trabalho desenvolvido pelo produtor Kelson Barros na divulgação, produção e circulação da companhia, abrindo espaço para uma obra de dança negra, com ótima bilheteria, em instituição como SESC-SP.

Segundo Oliveira, “o Gumboot Dance é uma dança totalmente musical e percussiva. Uma dança que traz uma complexidade rítmica, além de exigir do corpo um bom condicionamento”. E isso se revela em cena, visto que o trabalho é bastante sensorial. “Se você fechar os olhos você sente, se tapar os ouvidos você sente. A vibração vinda a partir das batidas das mãos nas botas é muito forte e energética”, complementa Oliveira.

Para além desta experiência, é possível perceber a história de vida dos intérpretes, seja no simples andar ou estar parado no palco. Quando dançam, o movimento é carregado de simbologia, de história, de raízes, que embora tecnicamente apresentem uma dança específica africana, a realidade é muito semelhante à daqui. O pensamento contemporâneo clama por reflexões sobre o momento presente, sobre violência, identidade, racismo; independentemente de qual matriz a dança surja. E conforme assegura o diretor, “a pesquisa nasce justamente das conversas entre os participantes do grupo, onde compartilhávamos histórias e experiências em comum, por sermos negros e moradores das periferias de São Paulo. Experiências de opressão, dificuldades, lutas, perdas, resistências e uma vontade imensa de gritar”.

                Tudo isso merece destaque e mais que justifica a existência da obra. Por outro lado, penso que o movimento de sair do espaço público, onde estavam mais acostumados a circular com Yebo, e criar especificamente para o palco, fez com que algumas escolhas dramatúrgicas fragilizassem a obra. O trabalho é bastante recortado, com cenas que iniciam e terminam a cada momento, prejudicando o desenvolvimento do espetáculo. Falta uma tessitura que permeie a construção da dramaturgia e não se configure como uma colcha de retalhos, semelhante ao que ocorre nas danças tradicionais clássicas.

Além disso, algumas destas cenas buscam interpretar a dramaticidade do tema, com momentos de sofrimento em que elenco, música, iluminação e outros elementos cênicos reforçam e escancaram tais intenções. Porém, a grande característica do grupo, a meu ver, é justamente a alegria que a dança emana. Dessa forma, os momentos se alternam entre uma dramaturgia narrativa, tentando contar uma história densa, e outros em que a própria dramaturgia do corpo se basta e, nestes, a dança por si só já comunica, como no excelente início do trabalho em que todos dançam, cantam e se divertem em uma espécie de ritual.

Jéssica Alonso, artista da dança e público, afirma que o grande destaque para ela do trabalho, está justamente na invocação de vários rituais. “Tribos africanas, com sua força e sua vivacidade para encarar até os momentos mais inconsoláveis. Rituais falados em sua língua própria, de revolta e de tristeza, ininteligíveis para quem ouve, mas perceptíveis na sensação. Rituais de sobrevivência para aguentar o calor, o cansaço e o desânimo quando parece que não se vai mais aguentar. Rituais de integração, que consideram as diferenças mantendo as individualidades. E, talvez o mais predominante para mim, rituais de descontração para desanuviar as preocupações cotidianas, para relaxar a musculatura depois de carregar sacos de carvão, para lidar com as faltas e as perdas”.

                E não há ritual sem música, corpo e dança. Nisso, Subterrâneo é primoroso, demonstrando habilidade em dosar tais elementos na construção da obra. É de se destacar o trabalho qualificado dos músicos, o que contribui para a experiência sensorial do público. Segundo Oliveira, foi bastante desafiador equilibrar os vários elementos sonoros, visto que era necessário compensar a captação do som das botas no chão, palmas, gritos e associá-los à música interpretada ao vivo por Rodriko Bragança (violão), Maurício Oliveira (percussão e sax) e Kiko Woiski (baixo). E de fato não há apenas um equilíbrio sonoro, mas tudo contribui para contagiar quem assiste com diversos elementos que convidam o público a dançar junto, ainda que permaneçam sentados.

Pasha Gorbachev, artista da dança e público, concorda que a música ao vivo é um dos destaques do trabalho, pois se torna inseparável ​​dos artistas e contribui na construção da experiência. E ainda complementa: “É um espetáculo muito poderoso, com uma dança cheia de energia e que exige coordenação e memória requintada. Algumas das escolhas de direção são comerciais, à beira de um show da Broadway; e acho que isso fez com que me mantivesse na superfície e não me deixou experimentar o profundo significado do trabalho. Mas vale muito a pena assistir”.

Definitivamente, em tempos em que há forte retorno de ideais segregadores, o trabalho Subterrâneo cumpre mais que o seu papel artístico de ser um espetáculo de dança, mas realoca o corpo negro em lugar de destaque, em lugar de fala, de canto, de dança, de política pública de cultura. Algo que não se pode deixar às margens, no subterrâneo, mas merece local de cada vez mais evidência, emergindo à superfície deste mundo contemporâneo.