segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

E eu continuo fazendo listas....

por Igor Gasparini

     Não faço parte atualmente de comissões de avaliação, mas tenho o hábito, compartilhado com alguns amigos, de anotar todas as obras assistidas no ano, sejam elas de dança, teatro, performance, filmes, séries... Mesmo estando muitas vezes em cartaz com o T.F.Style Cia de Dança, foram mais de 50 trabalhos de artes cênicas assistidos ao longo do ano de 2019 e, por uma avaliação bastante pessoal, somada à alguns critérios, segue meu TOP 12:


  1. “Normal”* – Cia Aliás Guilherme Botelho (Suíça) – Bienal SESC de Dança.
  2. “C’est lui qui tombe” – Aquele que cai (França) – SESC Pinheiros
  3. “Fúria” – Lia Rodrigues Cia de Dança – SESC Consolação.
  4. “Fluctuantes” – Colectivo La Vitrina (Chile) – CRD
  5. “A repetição – História(s) do Teatro” – Milo Rau (Suíça) – MIT-SP
  6. “Agitadores” – Plataforma Mono y Pita Torres (Chile) – CRD
  7. “Contorno, desvio e permanência” – Isis Gasparini – Galeria Adelina
  8. “Corpo Manifesto” – Vera Sala e Wellington Duarte – CCSP
  9. “Instante já” – Marcus Moreno – Galeria Olido.
  10. “Situação de Atrito 3” – Wellington Duarte – FUNARTE.
  11. “Filhxs da P@rra Toda” – Coletivo Calcâneos – CRD
  12. “Sentido Proibido” – Coletivo Um Café da Manhã – Tendal da Lapa

*Vou publicar um texto sobre “Normal” em breve. Fiquem de olho.

E a quem possa interessar... Ficam as indicações caso encontrem esses grandes artistas e obras. Parabéns a todos e obrigado por tanta arte em São Paulo!


Dos filmes e séries, recomendo:
  1.  “Hereditary”
  2. “Sem amor”
  3. “Chernobyl” (minissérie)
  4. “Olhos que condenam” (minissérie)
  5. “The handamaid’s Tale” (2ª temporada)
  6. “Black Mirror” (5ª temporada)
  7. “Gone girl”


terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Corpo Radar

Corpo Radar
por Igor Gasparini

            Como formigas no gramado, fomos lançados a uma experiência de corpo e percepção. Copos de isopor com um pequenino buraco ao fundo foram levados aos olhos presos por elásticos e isso bastou para transformar a relação deste corpo naquele espaço. Com a visão comprometida, me senti como um radar, pois todos os outros sentidos foram aguçados em progressão. Os sons de pássaros e aviões, o cheiro de grama e fumaça, o toque em uma árvore ou nos próprios colegas foram potencializados por não podermos de fato enxergar. E meu corpo foi motivado a buscar, procurar, tentar reconhecer, ainda que por outras percepções daquelas que utilizamos em habitual. 


A tentativa de descrever um laboratório corporal desta ordem é sempre desafiadora, mas conforme afirma Jorge Larrosa Bondía, a experiência é “o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que passa, não o que acontece, ou o que toca. (...) Nunca se passaram tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais rara” (Bondia, 2002). Para ele, a experiência está cada vez mais incomum em razão dos vários excessos de informação, bem como da constante falta de tempo e, justamente por isso, estar em experiência em tempo real, observando a si mesmo, e em oportunidade de se relacionar com o meio, foi tão inquietante.

Reflito que tal experiência ainda se configura como uma metáfora da vida, visto que viver não é senão um recorte preciso de tudo que nos atravessa. Consciente ou inconscientemente, um misto de emoções geradas basicamente por uma pausa na rotina diária e por estar em campo aberto aguçando outros sentidos, dado o comprometimento da visão por um objeto relacional. Os copos de isopor funcionaram como uma venda parcial, mas ao mesmo tempo, permitiram uma perspectiva de zoom e, por serem posicionados em diagonais opostas, forçavam a visão para um lado em detrimento do outro.

Uma permanente falta de controle, ainda que por 20 minutos. Um estado que não promovemos ao corpo sempre alicerçado na visão como fonte primária e essencial das percepções. E conforme aponta Alva Nöe, a percepção é algo ativo e, portanto, quando nos deparamos como uma situação assim, aguçamos automaticamente os outros sentidos, vivenciando uma experiência singular, aqui metaforizada pela ideia de radar: o corpo como instrumento de caça por sinal, por algo além. Quais percepções foram alteradas ou potencializadas por esta experiência?

Na impermanência de movimentos que desejavam mover, o fenômeno configurou-se para além do visível, um metafenômeno para além do vivido. E a experiência situou-se mais a frente do que é, em uma intensificação do corpo radar, um corpo em busca, o que considero essencial a todo artista do corpo e da dança.

Nota: Sobre experiência com objeto relacional em disciplina "Escritas da Cena", da pós graduação UNICAMP, ministrada pela Profa. Dra. Juliana Moraes.

domingo, 17 de março de 2019

Nó na garganta

por Igor Gasparini



Não há nada a celebrar no Brasil de hoje! E talvez tampouco no mundo!

Vivemos uma onda perigosa de totalitarismo; de violência; de falta de afeto, alteridade e empatia.

Mal recuperamos de uma tragédia, e já estamos diante de algo pior. O ano de 2019 veio com força para ser lembrado sem muita nostalgia. 

Na abertura do MITsp - Mostra Internacional de Teatro, no dia em que marca 1 ano do assassinato de Marielle e seu motorista, a peça “A repetição. História(s) do Teatro (I)”, traz uma narrativa desconstruída de uma ficção um tanto real: 

O assassinato após espancamento de um homem gay com ascendência árabe. Homofobia e Xebofobia dão as mãos em obra do diretor suíço Milo Rau, expondo que os problemas são um tanto globais. 

A peça celebra o fazer teatral entre a comédia e a tragédia, socando seu estômago como se fosse você, a vítima do espancamento. E não é que somos?

Nós todos: Marieles, Romualdos, Luíses... tendo cada um a sua história marcada pelo ódio e regada a muito sangue. 

Quem será a próxima vítima? Quantos serão? O que fazer? 

Enquanto isso o jovem canta... a corda envolve o pescoço... e a luz se apaga. A obra termina e eu volto para casa em silêncio com um nó na garganta!


quarta-feira, 14 de março de 2018

A Carne da Alma Exposta

por Rodolfo Lima

Sobre Carne Urbana
T.F.Style Cia de Dança


Penso que o mais interessante do trabalho foi a perspectiva de ver de dentro. Quando foi dado o comando de que podíamos circular pelo espaço, a vontade e vocês foram se movimentando apesar de quem e como as pessoas os rodeavam, pensei: isso é bem legal. Pois o olho a olho poderia alterar o estado emocional do interprete, bem como o do público. Para mim uma troca justíssima e bem vinda. Não me senti invadindo, muito pelo contrário, me senti acolhido, pertencente aquele universo, mesmo que de braços cruzados e imóvel. 



Em certo momento vocês construíram aquele monte-estátua a poucos centímetros de mim. Ou seja, bastava eu esticar as mãos e eu estava dentro da cena, com vocês. Inserido num universo que nem sei qual é, mais que me receberia. Uma das grandes questões da contemporaneidade é quando o artista propõe uma interação e não dá conta dela. É muito moderninho se dizer descolado e desconstruído, supor uma abertura ao público e se acovardar diante do infinito que é o outro. Se o trabalho é esse: o-público-e-os-artistas-tudo-junto-misturado...bingo!!! Achei sutil e generoso essa possibilidade. Pois cabe a mim tomar uma decisão. Me abrir ao trabalho ou não e como escolho fazer isso. 

Caso eu me mexesse e também tentasse esticar meu corpo no máximo que eu pudesse, a sensação é que eu não seria desprezado por isso. O que aconteceria? Ficou na imaginação. Esse foi o maior ganho para mim do trabalho, a possibilidade de poder ser, apesar de não ser. Me lembrou um pouco o que a Lia Rodrigues propõe com o "Para que o céu não caia", mas o fato de vocês supostamente se permitirem mais, me chamou a atenção. 

Mas quem delimita esse limite? Em dado momento, senti uma respiração no meu tornozelo, ou seja, estavam comigo, mesmo sem me tocar. Que sensação agradável. Para mim, foi um absurdo ter sido acusado de ter atrapalhado após a apresentação. Uma visão retrógrada do quem vem a ser uma interação, a dança, a troca. Primeiro, porque eu tinha liberdade para SER LIVRE NO ESPAÇO, e segundo porque eu acreditei (intui) que a interação com vocês era parte do trabalho. Quando me vi sozinho no meio de vocês, senti vergonha dos colegas artistas, que escolheram se escorar num canto, impossibilitando o contato com vocês. Porque não nos misturarmos mais, em vez de nos apartarmos? 

Acho que os artistas não estão na mesma entrega. Senti com duas bailarinas - por exemplo - um misto de abertura e concentração muito interessante, ou seja.. elas poderiam ser afetadas por mim, mas estavam conscientes do que deveriam fazer. Dos meninos... vi mais técnica e menos intimidade.Vamos nos olhar e não nos contaminar. Mas com duas de vocês não... foi quase como se pudesse abraçá-las, por exemplo. Ou seja, o sentimento - seja lá qual ele for, e tudo bem ser sentimentos ruins, não é claro para todos. E como medir uma entrega? Então, diria que essa disponibilidade individual é algo que talvez precise ser equalizado entre todos. Ou não né... afinal a arte em si em contato com o público é uma obra aberta. 

São desse tipo de artista que se arrisca que quero me contaminar. Vocês poderiam ter se arriscado mais? Sim. Mas espero que a inquietação que move vocês e os estimula só cresça, para que todos entendam que não a nada mais bonito, emblemático e tocante do que a carne da alma exposta. Que o suor produzido da fragilidade. Acho que essas palavras divergem um pouco do consenso e talvez seja importante, não para inflar o ego, mas para ressaltar que me proporcionaram um vislumbre de reciprocidade com a arte. E isso, meu caro... é muita coisa, creia.




Rodolfo Lima é ator, diretor de teatro, jornalista e Mestre em Divulgação Cientifica e Cultural pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Pesquisa atualmente a relação entre teatro e gays para sua tese de doutorado. Como ator e diretor de teatro trabalha com a literatura nacional e suas possibilidades em cena. Como ator e diretor tem no seu currículo peças adaptadas da obra de Caio Fernando Abreu “Réquiem para um rapaz triste” (2003) “Todas as horas do Fim” (2004), “Epifanias” (2009), “Epifanias 2”(2010) e “Cerimônia do Adeus” (2013). Também no currículo de Rodolfo Lima e, consequentemente, do seu Teatro do Indivíduo temos as peças: “Bicha Oca” (2009) e “Desamador” (2013), respectivamente trabalhos baseado na literatura dos autores Marcelino Freire e Fabricio Carpinejar.

sexta-feira, 22 de setembro de 2017

É preciso falar sobre Burkina Faso


por Igor Gasparini

                No mês de setembro de 2017, o SESC-SP trouxe a companhia Mouvements Perpétuels, de Burkina Faso, país do continente africano, para abertura da Bienal SESC de Dança, em Campinas, e apresentações no SESC Vila Mariana, em São Paulo. Se tentarmos buscar na memória a quantidade de trabalhos internacionais de dança contemporânea que escapem do eixo Europa - Estados Unidos, programados no Brasil, fatalmente, teremos um número muito pequeno como resultado. Desta forma, torna-se importante destacar a iniciativa e que esta não se limite apenas a eventos ocasionais, mas permeie toda a programação de dança nacional, seja com trabalhos da África, como também da Ásia, da América Latina que, em geral, conhecemos muito pouco.

"Do Desejo de Horizontes" - Mouvments Perpétuels

                É preciso falar de Burkina Faso, primeiramente, porque nossa ignorância já inicia com pouco ou quase nada de conhecimento sobre se quer onde este país se localiza. No noroeste da África, possui fronteiras com Mali, Togo, Gana e Costa do Marfim. Também é importante saber que até 1960 o país ainda era uma colônia francesa e, como muitos países deste continente, sofrem até hoje as consequências do estupro colonial, do racismo e das diversas mazelas sociais que resultam em guerras civis, com grande movimento migratório em busca de melhores condições de existência. É neste cenário que o trabalho “Do Desejo de Horizontes” se insere e busca refletir o tema do exílio, inspirado por oficinas de dança contemporânea desenvolvidas pelo coreógrafo Salia Sanou em campos de refugiados na África.

                Em tempos sombrios, também é preciso falar sobre acolhimento e respeito à vida. Novamente com o olhar muito focado a versão única de uma história, somos facilmente levados a comprar uma ideia de vitimização dos europeus ou norte-americanos. Com ataques terroristas espalhados pelo mundo e, obviamente, não querendo os justificar, tendemos a olhar com muita compaixão aos atentados, mas não percebemos com o mesmo cuidado o quanto de violência esses Estados praticam contra aqueles que por décadas foram colonizados. Falamos pouco sobre o quanto é cada vez mais forte a negação e a tentativa de impedimento do movimento migratório, resultando em números ainda mais significativos de mortes daqueles que tentam entrar a todo custo em território europeu. Fugidos da África, da Síria, ou de outros locais em que a situação é deveras pesada, a situação faz com que o grande risco de se lançar ao mar seja a única saída.


                E todo este contexto é revelado em cena, não como narrativa, mas como potência de corpo. É possível perceber a história de vida daqueles intérpretes, seja no simples andar, correr ou estar parado no palco. Quando dançam, o movimento é carregado de simbologia, de história, de raízes, que muito se assemelham àquela realidade por aqui também vivida, no Brasil. Um país também colonizado por europeus, com consequências da escravidão e do racismo que permanecem até hoje. Portanto, mais do que falar sobre Burkina Faso, é preciso também destacar a potência do gesto, carregado de história, de violência e de desejo; é preciso aplaudir de pé e reconhecer nossa ignorância; é preciso valorizar a iniciativa do SESC e cobrar que mantenham esta ponte área aberta a mais opções de origem; é preciso celebrar a dança contemporânea de matriz africana e, por fim, reconhecer que o entendimento de contemporâneo como técnica europeia ou norte-americana está mais que ultrapassado. O pensamento contemporâneo clama por reflexões sobre o momento presente, sobre violência, morte, identidade, racismo; independentemente de qual matriz a dança surja. É preciso alteridade.




segunda-feira, 14 de novembro de 2016

La Bête (O Bicho) - Um estudo sobre não ser espectador


Por Igor Gasparini

                O 9º Festival Contemporâneo de Dança (FCD), dentre os trabalhos convidados, apresentou uma mostra do repertório de Wagner Schwartz, artista brasileiro residente na França que, na última sexta (11), esteve em cena com La Bête (O Bicho), no palco da Galeria Olido. A performance busca uma relação ativa na participação do público e é nesta interação que desenvolve sua dramaturgia. A partir da réplica de plástico de uma escultura da série Bichos (1960) de Lygia Clark, Schwartz entrega seu corpo nu ao público para que moldem suas formas, manipulando-o como se alterassem os segmentos articulados dos “bichos” de Clark.

Wagner Schwartz em La Bête (O Bicho) - Foto: Humberto Araújo

                 Muitos são os autores que se detiveram a estudar o espectador como agente ativo na concepção de uma obra, abandonando uma postura passiva de quem espera ou cria expectativas quanto àquilo que será apresentado. A obra O espectador emancipado (2010), de Jacques Rancière, é uma delas:

“A condição do espectador é uma coisa ruim. Ser um espectador significa olhar para um espetáculo. E olhar é uma coisa ruim, por duas razões. Primeiro, olhar é considerado o oposto de conhecer. Olhar significa estar diante de uma aparência sem conhecer as condições que produziram aquela aparência ou a realidade que está por trás dela. Segundo, olhar é considerado o oposto de agir. Aquele que olha para o espetáculo permanece imóvel na sua cadeira, desprovido de qualquer poder de intervenção. Ser um espectador significa ser passivo. O espectador está separado da capacidade de conhecer, assim como ele está separado da possibilidade de agir”. (RANCÈRE, 2010).

A postura do público diante do corpo nu de Wagner Schwartz suscita algumas reflexões: quais os limites deste corpo? Quais os tabus envolvidos? Interagir com o artista, por si só, torna-lhe um espectador emancipado? Entre outras questões que fiquei me perguntando enquanto observava atentamente as múltiplas reações dos presentes, nem tanto do artista.

                Ao menos nesta sessão em que estive presente, todas as interações foram extremamente cautelosas. Mexiam em seus braços e pernas como se manipulassem um objeto de cristal. Por duas vezes o intérprete quase desmoronou, mas as pessoas, de prontidão, evitaram a queda. E eu me perguntando: por quê? Qual a razão deste excesso de zelo com o corpo de um artista que se coloca em cena entregue à sua arte? O que ocorreria se deixássemos esse corpo cair? Ou ainda, quais seriam as saídas caso alguém o colocasse em uma posição desconfortável e por lá permanecesse por algum tempo? Infelizmente, não foi possível ver este corpo sendo desafiado, havia sempre alguém muito ansioso a mexer e mexer no brinquedo que ali descobriu. Por uma hora. Sem grandes mudanças ou surpresas.

                Com a mesma ansiedade com que os presentes interagiam com seu bicho, um homem por vezes ainda estimulava: “Vamos gente! Não precisa ter vergonha! Vai lá! (...)” Enquanto fazia a sua forma de interação, pela fala, Wagner era manipulado ora de pé, ora sentado, ora deitado... Até que uma moça resolveu experimentar ser bicho também. Algo ali parecia se revelar em outra ordem, com uma nova possibilidade de corpo, que agora este “espectador” passava a experimentar junto ao artista. Após algumas interações, o homem falastrão que até então não havia se levantado, adentrou à cena, mas para mexer no bicho fêmea. Obviamente, agora estava autorizado a manipular. Antes não, pois se tratava de um corpo nu masculino. Já no feminino, pode. E isso diz muito sobre nossa sociedade e cabe grande reflexão.

                Outra questão evidente refere-se ao tabu que ainda há na relação das pessoas com corpo nu. Muitos mexeram em sua cabeça, braços e pernas, mas ninguém se aproximou de sua região pélvica, de seu quadril, sendo que a nudez não era uma mera arbitrariedade. Mais uma vez, pouca surpresa. Não por parte do artista, mas de seu público.

Wagner Schwartz em La Bête (O Bicho) - Foto: Humberto Araújo

                André Lepecki, em seu texto Coreopolítica e Coreopolícia (2012), apresenta os conceitos de política e polícia a partir dos filósofos Jacques Rancière e Giorgio Aganben para suscitar a potente reflexão de que para se fazer política, é preciso parar, pensar, debater e refletir em conjunto, no espaço público. Enquanto a polícia seria a responsável por manter o fluxo, um movimento contínuo que não permite reflexão, apenas está condicionado a obedecer as normas, seguir as regras, manter a ordem, respeitar as tradições e os bons costumes.

“Vamos considerar aqui “polícia” um ator social na coreopolítica do urbano atual, uma figura sem a qual não é de todo possível pensar se a governamentabilidade moderna. Uma figura também cheia de movimento, particularmente o ambíguo movimento pendular entre a sua função de fazer cumprir a lei e, a sua capacidade para a sua suspensão arbitrária; uma figura cujo espetáculo cinético é de chamar para si o monopólio sobre a determinação do que, no urbano, constitui um espaço de circulação, tarefa que executa não apenas quando orienta o trânsito, mas também quando executa com alarde a sua performance de transgressão de sentidos de circulação na cidade, com carros velozes cheios de luzes e sirenes alardeando assim a sua excepcional ultramobilidade, uma vez que para a polícia nunca existe a contramão”. (LEPECKI, 2012)

                A arte, muitas vezes, está no lugar justamente de quebrar algumas normas, ou ao menos fazer com que o espectador seja de fato emancipado de sua ignorância alienada, como também defendia Bertolt Brecht, o que penso não se resolver apenas “interagindo” com a obra, mas construindo um pensamento político reflexivo que não combina com o autopoliciamento constante. Infelizmente, o público da Galeria Olido estava coreopoliciado demais, cumprindo suas normas e pouco consciente de seu potencial transgressor, ainda que provocado pelo artista.

                


terça-feira, 8 de novembro de 2016

A pele como uma dramaturgia dos avessos


Por Thiago Alixandre

Num sentido anatômico e não matemático, a matriz é o órgão das fêmeas dos mamíferos, na cavidade pélvica, onde o embrião e posteriormente o feto se desenvolvem. Neste sentido pode-se dizer que as matrizes da TF Style cia de dança derivam das danças urbanas.

Foto: Danilo Patzdorf


Em Sob a Pele (2016), sua mais recente coreografia, a TF vai aos poucos misturando no corpo um fazer com atravessamentos no qual as danças urbanas se tornam uma espécie de perfume da memória uterina.

Dirigida pelo bailarino Igor Gasparini e realizada pelo seu afinado elenco, a cia materializou nos últimos nove anos um percurso no qual produziu oito coreografias. Um número admirável quando se sabe que há um contingenciamento cultural no qual a falta de financiamento dos trabalhos artísticos hostilizam a sobrevivência de grupos e sua produtividade. Neste caso, a pulsão criativa driblou o contingente fazendo disso um dos traços principais do percurso profissional da Cia.

Com as raízes coreográficas na rua e seus frutos dramatúrgicos no palco, o desafio desta proposta artística parece ser o de conciliar a leitura contemporânea que faz das danças urbanas com o modo composicional de realizar suas obras.

Sob a Pele cumpre a tarefa artística de perturbar os hábitos cognitivos da plateia e não atender a expectativa do ideário comum associado ao Hip Hop, todavia vale se atentar para uma lógica que a obra revela. Nela parece conviver dois entendimentos de dança. Num a dança é uma conversa do corpo com o espaço, noutro os movimento e os espaços são usados para tentar falar algo. Uma dramaturgia feito pele que não se contradiz, mas tem avesso.

Na história da dança cênica, a certa altura, do barroco ao período romântico, a dança deseja contar uma trama, já na modernidade ela abandona a necessidade de contar uma historia, mas ainda tem a necessidade de comunicar um assunto ou tema do qual fala sobre. Mais a diante, na pós modernidade alguns artistas entendem que quando a dança é usada como suporte de metáforas e mensagens, ela fica refém desta função e se esvazia na potencia de gesto por isso tentam emancipar a dança destas funções, permitindo a dança explorar a si mesma e dizer-se. 

As danças cênicas tem uma história diferente das danças urbanas, todavia vale lembrar que em sua matriz as danças de rua, quando estão na rua, elas tendem a explorar a plenitude dos gestos, ou seja,  o jeito de fazer aquele movimento e de mover-se com ele, raramente tem a intenção de significar algo para além do gesto.  

Quando a dança de rua entra no palco, o que ficou na calçada? Esta parece ser a pergunta que a TF Style cia de dança tem se feito e que Sob A Pele explora poeticamente. As vezes na cena existe apenas um ambiente sonoro e uma conversa do corpo com ele, não uma legenda sublinhadora, em diversas situações nossa percepção é convocada a seguir lendo um corpo que comanda a dramaturgia, que se apoia no seu gesto para comunicar-se.
Noutras situações, por terem narrativas próprias, as músicas atrapalham a narrativa do corpo, elas se sobrepõem, ganham mais espaço que o corpo que dança e se tornam protagonistas da cena.

São dois tipos de entendimento sobre cena e dramaturgia que conflitam em Sob a Pele, um entendimento se escama no outro e ainda não fica claro se o confronto é para um extinguir o outro, ou se é para deste atrito vencer um jeito de fazer que ainda está em curso.   

Foto: Isis Gasparini

A obra coreográfica permeia uma camada estética fina da pele que tange,  vai se descascando e deixando em suspenso se as próximas criações não se importarão com a cobrança de contar algo, dar uma notícia ou fazer uma pergunta e assim passar a existir em sua plenitude como dança, ou se a exploração investigativa de sentidos seguirá na direção de emitir mensagens com o corpo.

Seja uma ou seja a outra, o mais importante parece ser a continuidade desta proposta, pois só o fazer poderá responder a pergunta que ele mesmo se fez. Felizmente de pele trocamos todos os dias.