segunda-feira, 14 de novembro de 2016

La Bête (O Bicho) - Um estudo sobre não ser espectador


Por Igor Gasparini

                O 9º Festival Contemporâneo de Dança (FCD), dentre os trabalhos convidados, apresentou uma mostra do repertório de Wagner Schwartz, artista brasileiro residente na França que, na última sexta (11), esteve em cena com La Bête (O Bicho), no palco da Galeria Olido. A performance busca uma relação ativa na participação do público e é nesta interação que desenvolve sua dramaturgia. A partir da réplica de plástico de uma escultura da série Bichos (1960) de Lygia Clark, Schwartz entrega seu corpo nu ao público para que moldem suas formas, manipulando-o como se alterassem os segmentos articulados dos “bichos” de Clark.

Wagner Schwartz em La Bête (O Bicho) - Foto: Humberto Araújo

                 Muitos são os autores que se detiveram a estudar o espectador como agente ativo na concepção de uma obra, abandonando uma postura passiva de quem espera ou cria expectativas quanto àquilo que será apresentado. A obra O espectador emancipado (2010), de Jacques Rancière, é uma delas:

“A condição do espectador é uma coisa ruim. Ser um espectador significa olhar para um espetáculo. E olhar é uma coisa ruim, por duas razões. Primeiro, olhar é considerado o oposto de conhecer. Olhar significa estar diante de uma aparência sem conhecer as condições que produziram aquela aparência ou a realidade que está por trás dela. Segundo, olhar é considerado o oposto de agir. Aquele que olha para o espetáculo permanece imóvel na sua cadeira, desprovido de qualquer poder de intervenção. Ser um espectador significa ser passivo. O espectador está separado da capacidade de conhecer, assim como ele está separado da possibilidade de agir”. (RANCÈRE, 2010).

A postura do público diante do corpo nu de Wagner Schwartz suscita algumas reflexões: quais os limites deste corpo? Quais os tabus envolvidos? Interagir com o artista, por si só, torna-lhe um espectador emancipado? Entre outras questões que fiquei me perguntando enquanto observava atentamente as múltiplas reações dos presentes, nem tanto do artista.

                Ao menos nesta sessão em que estive presente, todas as interações foram extremamente cautelosas. Mexiam em seus braços e pernas como se manipulassem um objeto de cristal. Por duas vezes o intérprete quase desmoronou, mas as pessoas, de prontidão, evitaram a queda. E eu me perguntando: por quê? Qual a razão deste excesso de zelo com o corpo de um artista que se coloca em cena entregue à sua arte? O que ocorreria se deixássemos esse corpo cair? Ou ainda, quais seriam as saídas caso alguém o colocasse em uma posição desconfortável e por lá permanecesse por algum tempo? Infelizmente, não foi possível ver este corpo sendo desafiado, havia sempre alguém muito ansioso a mexer e mexer no brinquedo que ali descobriu. Por uma hora. Sem grandes mudanças ou surpresas.

                Com a mesma ansiedade com que os presentes interagiam com seu bicho, um homem por vezes ainda estimulava: “Vamos gente! Não precisa ter vergonha! Vai lá! (...)” Enquanto fazia a sua forma de interação, pela fala, Wagner era manipulado ora de pé, ora sentado, ora deitado... Até que uma moça resolveu experimentar ser bicho também. Algo ali parecia se revelar em outra ordem, com uma nova possibilidade de corpo, que agora este “espectador” passava a experimentar junto ao artista. Após algumas interações, o homem falastrão que até então não havia se levantado, adentrou à cena, mas para mexer no bicho fêmea. Obviamente, agora estava autorizado a manipular. Antes não, pois se tratava de um corpo nu masculino. Já no feminino, pode. E isso diz muito sobre nossa sociedade e cabe grande reflexão.

                Outra questão evidente refere-se ao tabu que ainda há na relação das pessoas com corpo nu. Muitos mexeram em sua cabeça, braços e pernas, mas ninguém se aproximou de sua região pélvica, de seu quadril, sendo que a nudez não era uma mera arbitrariedade. Mais uma vez, pouca surpresa. Não por parte do artista, mas de seu público.

Wagner Schwartz em La Bête (O Bicho) - Foto: Humberto Araújo

                André Lepecki, em seu texto Coreopolítica e Coreopolícia (2012), apresenta os conceitos de política e polícia a partir dos filósofos Jacques Rancière e Giorgio Aganben para suscitar a potente reflexão de que para se fazer política, é preciso parar, pensar, debater e refletir em conjunto, no espaço público. Enquanto a polícia seria a responsável por manter o fluxo, um movimento contínuo que não permite reflexão, apenas está condicionado a obedecer as normas, seguir as regras, manter a ordem, respeitar as tradições e os bons costumes.

“Vamos considerar aqui “polícia” um ator social na coreopolítica do urbano atual, uma figura sem a qual não é de todo possível pensar se a governamentabilidade moderna. Uma figura também cheia de movimento, particularmente o ambíguo movimento pendular entre a sua função de fazer cumprir a lei e, a sua capacidade para a sua suspensão arbitrária; uma figura cujo espetáculo cinético é de chamar para si o monopólio sobre a determinação do que, no urbano, constitui um espaço de circulação, tarefa que executa não apenas quando orienta o trânsito, mas também quando executa com alarde a sua performance de transgressão de sentidos de circulação na cidade, com carros velozes cheios de luzes e sirenes alardeando assim a sua excepcional ultramobilidade, uma vez que para a polícia nunca existe a contramão”. (LEPECKI, 2012)

                A arte, muitas vezes, está no lugar justamente de quebrar algumas normas, ou ao menos fazer com que o espectador seja de fato emancipado de sua ignorância alienada, como também defendia Bertolt Brecht, o que penso não se resolver apenas “interagindo” com a obra, mas construindo um pensamento político reflexivo que não combina com o autopoliciamento constante. Infelizmente, o público da Galeria Olido estava coreopoliciado demais, cumprindo suas normas e pouco consciente de seu potencial transgressor, ainda que provocado pelo artista.

                


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