por Igor Gasparini
Não há como dissociar comunicação de
cultura. Para Harry Pross (1923-2010),
o corpo é um meio de comunicação e gestos e expressões revelam uma cultura
local. A cultura configura o corpo e o comportamento, comunicando valores.
Segundo este autor, citado por Francisco Rüdiger em A teoria da Comunicação (2004, p. 49), os meios de comunicação podem ser divididos em três categorias:
primários, quando a comunicação ocorre entre as pessoas sem instrumentos, como
acontece na dança; secundários, na medida em que há o emprego de várias
tecnologias na produção da mensagem, como nos vários tipos de impressos; e os
terciários, constituídos por sistemas tecnológicos que necessitam de
instrumentos tanto do lado do comunicador quanto do lado do receptor, como
ocorre no rádio ou televisão. Nestas duas últimas classificações é que habita o
jornalismo cultural, fazendo a ligação entre o espetáculo e seu potencial
público.
O Jornalismo Cultural agrega diversos
gêneros jornalísticos, que variam desde a informação sobre um espetáculo, como
ocorre nos Guias Culturais na forma
de um serviço prestado ao leitor para uma consulta mais ligeira, com suas
avaliações rasas entre estrelas, bolinhas, e etc., passando pelas resenhas e
até os textos mais densos como as críticas.
A resenha corresponde, segundo José Marques de Melo (1985), a uma
apreciação das obras-de-arte ou dos produtos culturais, com a finalidade de
orientar a ação dos fruidores ou consumidores. Neste caso, a resenha tem por
objetivo indicar qual espetáculo escolher, dentre tantas opções de uma grande
metrópole. Essa característica é a principal diferença da crítica, que busca
uma apreciação completa do autor/obra.
Para Daniel Piza, a boa resenha é
aquela que ainda em pouco espaço, busca uma combinação de atributos como
sinceridade, objetividade, preocupação com o autor e o tema. “Deve ser em si uma
‘peça cultural’, um texto que traga novidade e reflexão para o leitor, que seja
prazeroso ler por sua argúcia, humor e/ou beleza” (PIZA, 2007, p. 71 e 72).
A crítica, por sua vez, faz uma
apreciação de outra natureza do autor e da obra. Ela apresenta o contexto
histórico, e uma reflexão que necessita de tempo e conhecimento do objeto para
ser elaborada. Não à toa, a resenha enquadra-se mais ao jornalismo que se
pratica atualmente.
Por outro lado, “a crítica exige diferentes métodos e
critérios que tornam o seu resultado incompatível com o exercício periódico e
regular em jornal, e mais incompatível com o próprio espírito do jornalismo,
que é informação, ocasional e leve”, afirma Marques de Melo em A opinião no jornalismo brasileiro (1985,
p. 99). Os críticos tentam manter seu
espaço, oferecer julgamento estético, aprofundar uma análise, entrar na
abordagem do bem cultural, porém, o espaço para esse tipo de texto vem
diminuindo progressivamente na mídia brasileira. Em todos os cadernos
culturais, a figura do crítico profissional das linguagens artísticas (dança,
teatro, ópera, música erudita...) está desaparecendo.
“Mas o que deve ser um bom texto
crítico? Primeiro, todas as características de um bom texto jornalístico:
clareza, coerência, agilidade. Segundo, deve informar ao leitor o que é a obra
ou o tema em debate, resumindo a história, suas linhas gerais, quem é o autor,
etc. Terceiro, deve analisar a obra de modo sintético mas sutil, esclarecendo o
peso relativo de qualidades e defeitos, evitando o tom de ‘balanço contábil’ ou
a mera atribuição de adjetivos. Até aqui, tem-se uma boa resenha. Mas há um
quarto requisito, mais comum nos grandes críticos, que é a capacidade de ir além
do objeto analisado, de usá-lo para uma leitura de algum aspecto da realidade,
de ser ele mesmo, o crítico, um autor, um intérprete do mundo” (PIZA, 2007, p.
70).
E ainda há quem discorde do papel
dos críticos, como Afrânio Coutinho, citado por Melo (1985), que afirma que
estes “são apontados como jornalistas que se improvisaram e se converteram
rapidamente em juízes; ou então, frustrados que buscaram abrigo nos meios de
comunicação para criticar com veemência os que obtiveram êxito na produção
cultural”. O quanto uma crítica, quando existente, pode influenciar a ida do
público a um espetáculo de dança é desconhecida e merece melhor atenção. No
caso da dança, deve-se ponderar também que, por conta da breve duração das suas
temporadas (uma média de três dias), raramente a crítica consegue ser publicada
com o espetáculo ainda em cena.
Existem ainda, além da crítica e da resenha, outros textos culturais com objetivos distintos. Na coluna de opinião, as características
são semelhantes, mas o autor assume seu posicionamento em tom pessoal; a reportagem tem objetivo de levar uma
novidade ao leitor e, por vezes, relaciona com fatos do dia a dia, por exemplo,
reportando alguma política pública cultural; e perfis e entrevistas
relatando vida e carreira de personagens de destaque nacional ou
internacionalmente.
Para Nicolas Bourriaud, em Estética relacional, “a atividade
artística constitui não uma essência imutável, mas um jogo cujas formas,
modalidades e funções evoluem conforme as épocas e os contextos sociais. A
tarefa do crítico consiste em estudá-la no presente” (2011, p. 15). Assim,
apresentar as relações entre contexto histórico e atualidade é uma atividade
que demanda tempo de pesquisa, realização de entrevistas, vivência entre
jornalista e artistas, o que não se faz na mesma agilidade exigida pelo
jornalismo diário. E, como observa Daniel Piza, “o jornalismo cultural
brasileiro já não é como antes” (2007, p. 7), comparando os textos dos autores
do passado com os poucos equivalentes do presente. O autor ainda defende que:
“há muito o que fazer pelo jornalismo
cultural no gênero da reportagem, inclusive no chamado ‘hard news’ (as notícias
mais quentes, inadiáveis), mas isso não pode ser feito à custa da análise, da
crítica, do debate de ideias – vocações características do jornalismo cultural
e carências fortes do leitor contemporâneo” (PIZA, 2007, p. 8).
(Espetáculo Anit - T.F.Style Cia de Dança)
Ele exemplifica que são muitas as oposições, de polarizações,
que contaminam o jornalismo cultural diariamente: entretenimento versus erudição; nacional versus internacional; regional versus central; jornalista versus acadêmico; reportagem versus crítica; entre outros, que fazem
com que a realidade atual deste segmento jornalístico seja bastante obscura até
mesmo para os próprios jornalistas que o fazem dia a dia.
Daniel Piza defende
que há muitas pessoas que associam “cultura” a algo inatingível, “exclusivo dos
que lêem muitos livros e acumularam muitas informações, algo sério, complicado,
sem a leveza de um filme-passatempo” (2007, p. 46). Dessa forma, tanto
jornalistas quanto veículos tendem a traçar caminhos exclusivos que enfoquem
apenas um lado, ou grupo específico de pessoas. Resenhar o último filme hollywoodiano
ou o cinquentenário de algum clássico do cinema? Há espaço para ambos no mesmo
veículo? Para ele,
“jornalismo é dosagem. Temas ditos
eruditos podem ser tratados com leveza, sem populismo; e temas ditos de
entretenimento podem ser tratados com sutileza, sem elitismo. Suplementos
semanais podem ganhar vibração jornalística, mantendo a densidade crítica;
cadernos diários, o inverso. Não há propriamente um método” (PIZA, 2007, p.
58).
Ainda segundo o autor, “cada publicação da imprensa tem um
público-alvo e deve se concentrar em falar com ele, sem abrir mão de tentar
contribuir com sua formação, com a melhoria do seu repertório” (2007, p. 47).
Aqui acrescento uma reflexão: qual seria então o público-leitor de um texto de
dança, seja resenha ou crítica? Para quem estamos falando? O que interessa a
essas pessoas? Acredito se tratar de um assunto que ainda merece maior atenção
e pesquisa.
Depois que a associação entre cultura e entretenimento se
estabeleceu como prática no jornalismo cultural, houve uma consequente
diminuição de espaço para as linguagens artísticas que permanecem fora do
grande espetáculo das mídias. Assim, o que ganha espaço se fortalece e continua
a ganhar cada vez mais espaço, e o que não está na mídia, está cada vez menos.
A consequência desse aparente beco sem saída vai resultar também no tipo de
produção. Soma-se a isso, o fato de que muitas reportagens apenas ecoam o
momento descartável do sucesso momentâneo daquela obra/artista.
Segundo José Arbex Jr., para a atividade jornalística, a
velocidade é cada vez mais importante. “A notícia é, por sua própria natureza,
uma mercadoria altamente perecível, torna-se antiga no instante mesmo de sua
divulgação, especialmente em um mundo interconectado por satélites e
bombardeado, a cada segundo, por uma imensa montanha de novos dados” (2001, p.
88). A análise aprofundada de um espetáculo, contextualizando-o, como preconiza
uma boa crítica, torna-se uma atividade cada vez mais rara. Arbex Jr. ainda
afirma que essa prática também produz uma “amnésia permanente”, abandonando
qualquer reflexão sobre determinado evento.
“Apenas e somente no processo de
interlocução com o outro, no exercício cada vez mais difícil de saber
identificar e escutar outras vozes, o crítico pode resgatar a memória dos fatos
para além de sua representação estereotipada e manipulada, encontrando as
perguntas certas para orientar seu trabalho de investigação e compreensão dos
fatos. (...) A memória tende a ser ‘encurtada’ – ou obliterada – pelo ritmo
frenético da vida condicionada pelo ‘mercado’, pelas imagens televisivas
mostradas em ritmo de vídeo-espaço público, com a atomização do indivíduo que
se retira para manter relação com as máquinas” (ARBEX JR., 2001, p. 270).
Neste paradoxo entre velocidade e
reflexão, experiência e tecnologia, a relação entre jornalismo e espetáculo de
dança necessita encontrar seu espaço. Local este em que o jornalista cultural
pode descobrir saídas textuais que complementem e contribuam para a
continuidade do processo de comunicação entre espetáculo e público, ou ainda,
que faça com que mais pessoas se interessem pela possibilidade de assistir a um
trabalho de dança.
“O fundamental no jornalista cultural
é que saiba ao mesmo tempo convidar e provocar o leitor, notando ainda que
essas duas ações não raro se tornam a mesma: o leitor que se sente provocado
por uma opinião diferente (no conteúdo ou mesmo na formulação) está também
sendo convidado a conhecer um repertório novo, a ganhar informação e reflexão
sobre um assunto que tendia a encarar de outra forma” (PIZA, 2007, p. 68).
Seria esse então um caminho para fazer com que as pessoas se
sentissem “provocadas” a assistir dança? E, com o tempo, o resultado fosse um
público maior e mais diversificado neste segmento artístico?
Em minha opinião, acredito que mais do que anunciar uma obra
artística ou tecer comentários sobre ela, é papel do jornalista cultural
refletir o comportamento, indicar tendências, contextualizar historicamente e
ser um veículo entre obra e público, complementando a comunicação inerentemente
presente na relação entre eles. Além, de alguma forma, tentar direcionar a
reflexão deste público para algo diferente do que salta aos olhos, do óbvio, o
fazendo pensar inclusive sobre a cultura na qual ele próprio é parte
integrante. Concordo com Octavio Paz,
quando defende que “ser culto é pertencer a todos os tempos e lugares sem
deixar de pertencer a seu tempo e lugar” (PAZ apud PIZA, 2007, p. 62).
Há ainda outra relação entre espetáculo e mídia que cada vez
mais se faz presente nas artes contemporâneas: a inserção da tecnologia como
mais um instrumento comunicativo. A ideia é justamente a de utilizar os
recursos tecnológicos como instrumentos de comunicação, bem como são utilizados
os demais recursos sejam textuais, coreográficos, cênicos ou interpretativos.
Com auxílio de tantos elementos comunicativos e, como consequência, atingindo
de diversas formas seu público, quando começar a olhar para si mesma com maior
complexidade – com maior grandeza – , a dança brasileira vai dar um salto,
salto esse que não se trata de um passo qualquer de uma coreografia.
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