por Bruna Sant'Anna
Sair despreparada
de casa foi essencial para ser tão surpreendida e sensibilizada por dois
trabalhos incríveis: "Hysteria", do Grupo XIX de Teatro e "Sobre
isto, meu corpo não cansa", da Quasar Cia de Dança. Devo dizer que tenho
receio de colocar minhas impressões aqui e me tornar repetitiva ou superficial;
não vou a uma apresentação para levantar questões críticas ao mundo, mas vou
pelo simples fato de ser prazeroso assistir arte.
O Grupo XIX escolheu
a Igreja da Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, na Penha, São Paulo,
como cenário, construída por escravos no século XIX, mesma época em que as
personagens se encontram em um hospício para serem curadas pelo Dr. Mendes e
por Jesus e se verem livres daquela internação. Enquanto isso não acontece,
aquelas mulheres, espertas e inocentes ao mesmo tempo, mostram com doses de bom
humor como é passar um dia lá, mas mostram do jeito que faz qualquer pessoa
tímida, como eu, querer sair correndo antes que seja tarde demais: há diversas
interações com o público feminino, sem sequer cogitar olhar para os meros
espectadores masculinos, fazendo-os inexistentes. Para o meu desespero, fui
solicitada algumas vezes, mas as mulheres me acolheram tão bem naquela casa que
abri meus braços gradativamente àquela ingenuidade adoecida.
Seus desejos eram
claros: liberdade, cura, voz ouvida, um bom casamento, muito coito e bem-estar
dos filhos. Esse é o papel da mulher: ser uma boa mãe e cuidar da casa, afinal,
o que mais a mulher pode ser ou querer da vida? O que é uma casa sem uma mãe?
Reduzir a mulher a essas funções e ainda calá-las é abafar uma humanidade
ímpar, histérica por si só, pelo singelo ato de olhar o mundo com olhos de
mulher, por sentir.
É uma peça envolvente,
especialmente para as mulheres, nem extensa nem longa, que me fez perguntar
para as outras mulheres que estavam comigo por que os homens entravam primeiro
e pegavam os melhores lugares e que apagou completamente essa sensaçãozinha
inicial de inferioridade ao me tirarem para dançar, sorrir e gritar, ao me
pedir ler um bilhete da coleção especial de bilhetes, ao orar por mim e pelas
outras para que haja muito coito nas nossas vidas, ao mostrar que mesmo
enclausuradas, a mulher pode ser tão grande e com tantas faces dentro de um
corpo só.
Se Hysteria me
trouxe essa reflexão, o espetáculo de Henrique Rodovalho, "Sobre isto, meu
corpo não cansa", ressaltou em mim, em meio a tantas histórias,
sentimentos e risadas, o que pensei ser uma das características mais fortes de
uma mulher: a capacidade de amar de um jeito singular (ou não). A trilha sonora
é esmagadoramente composta por vocais femininos da música brasileira (Clarice
Falcão, Malu Magalhães e Tulipa Ruiz) que cantam histórias de amores mais contemporâneos,
distantes daquele século XIX, que ao mesmo tempo em que não desgruda de um
abraço ou faz gracinhas com cheiro de inocência infantil para alguém, tem os
pés no chão. A maior participação vocal masculina é nos momentos em que todos
os bailarinos cantam em cena.
(Quasar Cia de Dança - Sobre isto, meu corpo não cansa)
Incansáveis
parecem as tentativas do elenco de procurar e arriscar, pois com certeza há
falhas pelo caminho e este está permeado por uma movimentação aconchegante,
surpreendente (ousadinha, às vezes) e fluida, fazendo com que eu me sinta dançando
simplesmente ao andar pela rua, por atingir gentilmente a minha realidade. Esse
toque é o que posso trazer agora de mais sincero. Vai bem além do gostar.
Vai também, junto
com Hysteria, para a seção de "reflexões válidas para a vida". Quantas coisas se perdem pelo caminho, quantas são agregadas,
outras exigidas, e mais algumas, afloradas. Nascer mulher é um ato ousado e
carregar tatuagens invisíveis que se revelam em certos momentos, para certas
pessoas, torna a tarefa de marcar o mundo com a própria existência mais amável.
Meus rabiscos, desenhos e escritas na pele me tornam sedenta, incansável,
histérica.
Bruna Sant'Anna
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Cursando Letras na Universidade de São Paulo (USP) e Técnico de Dança, reconhecido pelo MEC, desenvolve há mais de sete anos as danças urbanas e também a dança do ventre. Com o T.F. Style, fez parte de temporadas dos espetáculos “Encontros e Desencontros”, “Deserto de Ilusões”, “Tempo”, “Beco” e “Anti” nos teatros Coletivo, Zanoni Ferrite, Centro da Terra, Sérgio Cardoso, Galeria Olido, Alfredo Mesquita, Martins Pena, entre outros. Participou da Virada Cultural de São Paulo e do Estado, além de realizar os Circuitos Culturais do Estado, SESC de Artes e Circuito São Paulo de Cultura. Faz aulas regulares com Igor Gasparini, Sonek e Félix Pimenta. Realizou workshops com Angel B (BRA), de “Dancehall”; Bryan Tanaka (USA), Casper Smart (USA), Guillaume Lorentz (FRA) e Khasan Brailsford (USA) de “Free Style Hip Hop”; Vanessa Conde (BRA), Laure Courtellemont (FRA), Lucas Migliorini (BRA), Karla Mendes (BRA), Cati Borba (BRA), Carolina Mercado (BRA) e Guillaume Lorentz (FRA), de “Ragga Jam”; Félix Pimenta de “Wacking” e Soneka e Popping D (BRA), de “Popping” e “Locking”. Atualmente, ministra aulas de Danças Urbanas no Phalibis Studio de Dança e faz parte do Programa Vocacional de Dança no CEU Formosa.
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