domingo, 23 de novembro de 2014

Desenhos... Pinturas... O corpo-pincel

por Igor Gasparini

"Ensaio-Pesquisa" desenvolvido como Artista Orientador do CEU Formosa pelo Programa Vocacional Dança, da Prefeitura de São Paulo - Equipe Leste 1 - Coordenação: Cláudia Palma


Desenhos... Pinturas... O corpo-pincel


            Muitos são os anseios que me trouxeram, neste ano, para o Vocacional. Embora já tenha inclusive pesquisado o Vocacional Apresenta como estudo de caso na monografia de Especialização em Jornalismo Cultural pela PUC-SP, com ênfase na comunicação entre espetáculo e público, ainda não havia conseguido abrir espaço para me dedicar ao Programa como Artista Orientador. Em 2014, interrompi o meu trabalho como jornalista para dedicar-me exclusivamente à dança: na prática, nas aulas, no T.F.Style Cia de Dança, na pesquisa e no Vocacional.


Não sei identificar bem quais são os limites de cada uma dessas atuações, visto que penso em todas elas interconectadas quando revejo minha trajetória na dança. Entretanto, consigo perceber que há algo que interliga todas essas ações: a minha vontade comunicativa por meio da dança. Acredito na importância de um trabalho que promova um diálogo com o público, que o leve a refletir, pensar, questionar. Não defendo que deva haver um entendimento completo da obra, mas eu, enquanto artista, devo apresentar caminhos para que o público possa encontrar suas formas de interpretação. E o meio utilizado para essa comunicação é o corpo, mídia de si mesmo, que por si só, já apresenta um fluxo constante de troca de informações, segundo a Teoria Corpomídia, (KATZ e GREINER, 1998).
A comunicação ocorre permanentemente na relação entre corpo e ambiente. Todo corpo, humano ou não, existe e pode ser chamado de corpo quando puder ser identificado por uma coleção circunscrita de informações que não para de se transformar. “Meio e corpo se ajustam permanentemente num fluxo inestancável de transformações e mudanças” (KATZ e GREINER, 1998, p. 91). A comunicação é então tecida por esse ajuste contínuo de transformações.
Sendo cada corpo uma mídia de si mesmo, isto é, do conjunto circunstancial de informações que o torna corpo e que nunca se completa, é possível afirmar que os processos de comunicação no ambiente não se estancam, visto que o fluxo de trocas entre ambos é constante. É no fluxo comunicacional que corpo e ambiente lidam com as informações, e elas buscam a sua sobrevivência através da adaptação e da reprodução. É neste ponto que se inscreve o meu momento profissional atual e muito do que vejo como potencial nos Vocacionados, pois cada corpo que chega às orientações já traz consigo toda a sua coleção de informações, de histórias, de memórias.

 

            E foi com o corpo, ou com vários deles, que trabalhei neste ano no CEU Formosa. Corpos bastante distintos e com variadas potencialidades, do jovem ao idoso, Vocacionados com e sem experiência na dança, e até portadores de necessidades especiais. Essa heterogeneidade apresentou a mim uma paleta de muitas cores, cada corpo com seu potencial criativo, com sua história de vida, com sua vontade comunicativa, dançando... E pintando... E dançando.
            Desenvolvi alguns processos criativos e a pintura norteou a investigação. Inspirados ora pela música, ora por técnicas variadas entre as danças urbanas e contemporâneas, ora por laboratórios, ora por experiências bastante individuais, tentamos descobrir esse corpo-pincel. E, com ele, muitas telas foram pintadas: com e no próprio corpo, no corpo do outro; chão, paredes, objetos e teto; dentro e fora do espaço dos encontros; no teatro; na gestão.
            O corpo-pincel, por ser mídia de si mesmo, desenhou sua história. E cada Vocacionado pintou suas memórias e imprimiu nos gestos toda a sua experiência pessoal. A cada encontro foram desenvolvidas novas iniciativas de trabalho, novos disparadores; partes do corpo tornam-se pincéis; e cada um trouxe cada vez mais tinta para nossa grande tela.


       Formas imaginárias ganharam contornos no papel e do papel, dança. Com pequenas intervenções, foram interagindo nas formas um do outro, seja na “tela”, seja no corpo-pincel. E das intervenções, novas formas, novos desenhos, novos contornos. Esse procedimento foi um dos escolhidos para a Mostra de Processos, no qual os Vocacionados, em interação com o público, solicitavam às pessoas que colocassem uma forma (ou um desenho) em um papel para, a partir disso, disparar a última dança da Mostra.
Ainda pensando no processo ao longo deste ano, em outro momento, a dança a partir da escolha de imagens que compõe o material educativo da 29ª Bienal de Arte de São Paulo para, então, resultar em reflexões múltiplas propostas e desencadeadas pelas próprias imagens. Dentre as muitas reflexões: Será possível superar a diferença entre as pessoas? Como a arte e a performance podem ter natureza transformadora? Como nossos gestos revelam quem somos e o que vivemos? A diferença pode ser matéria de interesse para a obra de arte? Um projeto de arte pode ser coletivo? O que é arte? Para que serve a arte? Em geral, tais questionamentos refletem diretamente o processo desenvolvido e a realidade dos Vocacionados dentro do contexto do Programa.


            Gostaria ainda de trazer duas ações realizadas neste período que trouxeram ainda mais tinta para essas reflexões. Com a equipe Leste 1, coordenada por Cláudia Palma, visitamos a exposição de Iberê Camargo no Centro Cultural Banco do Brasil e muitas foram as sensações colocadas na “gaveta dos guardados” (Iberê Camargo, 1993), além das reflexões que reverberam diretamente no trabalho com os Vocacionados. Cada obra de Iberê, notadamente, traz muitas camadas. E, a partir disso, veio a reflexão: Quantas camadas tem a dança? Conseguimos ver ou identificar essas camadas quando assistimos alguém dançando? Quais são as camadas mais profundas, aquelas que servirão de base para esses artistas, e quais são as mais superficiais e até descartáveis?

(Exposição Iberê Camargo - Centro Cultural Banco do Brasil)


A partir do vídeo que mostrava o “processo” desenvolvido por Iberê, uma nova potente reflexão: “A gente passa por muitas coisas lindas para chegar nesta coisa ótima”. Quantas vezes neste processo criativo, desenvolvido por 8 meses, atravessamos bons momentos, mas que são modificados ou remodelados? Às vezes precisamos carcar mais a tinta, às vezes apagar, borrar, misturar as cores. E desses vários momentos, o resultado não pode ser outro: chegamos a essa coisa ótima. Será?
            Em um segundo momento, houve a visita com os Vocacionados à exposição Obsessão Infinita, de Yayoi Kusama, no Instituto Tomie Ohtake. A ideia de visitar essa exposição surgiu em um encontro no qual conversei bastante com duas Vocacionadas portadoras de necessidades especiais. A vontade de visitarmos um espaço expositivo, tendo em vista o processo que temos desenvolvido, já existia. Entretanto, nesta conversa, as duas meninas contaram várias dificuldades que enfrentaram em suas vidas, sendo consideradas loucas por muitos e excluídas de vários contextos. O relato de uma delas, dizendo que, ao entrar na primeira série com 13 anos de idade, sentia-se muito mal porque as meninas atiravam papel nela e a chamava de louca, me fez refletir: o que é a loucura? De onde surge a arte? Por que não da insanidade que todo artista traz consigo? Por que não por meio dos excluídos? Por que não no CEU Formosa? Automaticamente pensei no Bispo do Rosário, artista visual, mas também na exposição em questão, refletindo sobre Yayoi Kusama que, voluntariamente, vive em uma instituição psiquiátrica desde 1977.

(Exposição "Obsessão Infinita" - Yayoi Kusama - Instituto Tomie Ohtake)

            E entre círculos, bolas, pontos, e símbolos fálicos, o que mais nos chamou a atenção foram as múltiplas obsessões, não da artista, mas de todos os que ali estavam. Obsessão pela fila: parece que quanto maior, melhor. Se há fila, lógico que é bom. Vamos nos aglomerar por quilômetros e andar passo a passo até adentrar o grande espaço expositivo. Para que mesmo? Talvez para levar uma recordação e gabar-se de tal “prêmio”.
E a obsessão pela #selfie; com todos os sintomas de alguém com sérios transtornos obsessivos compulsivos. A obsessão por registrar o momento; para levar consigo seu souvenir; para postar sua foto nas redes sociais. Mas... E a experiência? E o olhar? E a sinestesia? Também não era possível, pois uma voz vinha do fundo de cada sala: “Um passo adiante, por favor!”; afinal, estava tão lotado que nem para sentir, nem para a #selfie, havia tempo.
Fui embora um tanto incomodado com isso, afinal, loucos poderiam ser muitos daqueles, menos minhas Vocacionadas que motivaram tal visita. Mas, enfim, voltemos ao processo, e que tal pesquisarmos a obsessão? Novas linhas foram desenhadas, linhas curvas, na verdade, com movimentos circulares, redondos, contínuos...



E a partir de então, era o momento de pensar a Mostra de Processos. “O processo se engendra de maneira cooperativa, com a participação de todos os artistas envolvidos, que atuam conjuntamente no decorrer da própria pesquisa de linguagem. As opções cênicas, nesse caso, não surgem como determinações vindas de fora, mas de dentro das experimentações, possibilitando uma investigação coletiva de caráter processual” (DESGRANGES, 2012, p. 205). Esse trecho extraído do livro “A Inversão da Olhadela: alterações no ato do espectador teatral” resume bem a minha atuação com os Artistas Vocacionados. Em nenhum momento busquei impor algo (de fora), mas eles próprios foram encontrando caminhos (de dentro) que surgiram a partir das várias inquietações corporais e reflexivas desenvolvidas ao longo do ano. O que te move? Qual a busca? Quais questões lhe inquietam? E a partir disso, trabalhamos muito pela improvisação, tentando ao máximo diversificar os disparadores dessa dança, sempre atrelado às sensações e à individualidade.


            Vejo o Vocacional potencializando processos artísticos colaborativos, visto que há a constituição de um coletivo de artistas em trabalho conjunto de investigação. E desta investigação surgiu o tema da nossa Mostra: interior. O que vem de dentro? O que você deseja expressar com sua dança? Qual é essa dança interior? Consequentemente, o objetivo foi então o de mostrar o potencial de cada corpo, individualmente, compensando a heterogeneidade inerente à realidade do nosso grupo.
Aos poucos, fomos percebendo que não era da individualidade que trataríamos, mas da singularidade, pois é esta que nos torna únicos. Cada corpo, com suas histórias (como já abordado neste texto), com sua coleção circunscrita de informações que se torna mídia de si mesmo, desenhando e pintando... Trazendo à tona suas emoções, desejos e todos os outros elementos de nosso estado criador interior. “A definição de um roteiro prévio fornecerá as bases para a improvisação, e o artista irá à cena, permitindo-se viajar pelo inconsciente” (STANISLAVSKI, 2005, p. 257). E nas Mostras, este inconsciente veio à cena, interpretado pela singularidade dos Artistas Vocacionados do CEU Formosa, com todo o seu potencial de corpo, expressando seu interior.

 

Referências:
DESGRANGES, F. A Inversão da Olhadela: alterações no ato do espectador teatral. São Paulo: Hucitec Editora, 2012.
KATZ, H.; GREINER, C. A natureza cultural do corpo. In Lições de Dança 3. Org.: Silvia Soter Roberto Pereira. Rio de Janeiro: Univercidade, 1998.
STANISLAVSKI, C. A criação de um papel. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

(Vocacionados, Artista-Orientadores, Coordenadores - CEU Formosa)



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