quarta-feira, 1 de outubro de 2014

O olhar de um unicórnio


Por Igor Gasparini

“Não, não, havia uma certa escuridão no olhar, principalmente quando ela estava perto dele. Do irmão? É. Ela tinha medo do irmão? A escuridão vinha do medo? A escuridão talvez viesse do medo de se sentir com medo” – O unicórnio, Hilda Hilst.


(O Unicórnio - Foto: Hellena Mello)


Na última segunda, 29, estive no Viga Espaço Cênico, em Pinheiros, para assistir ao espetáculo teatral O unicórnio, dirigido por Christina Trevisan. Reconhecida por seu trabalho na área de musicais, ao contrário do que se esperaria, a peça surpreende pelo drama imposto pela sensível protagonista interpretada por Flávia Couto. Ao lado de Frank Tavantti e Vivyan Albouquerque, a trama constrói-se a partir da adaptação do texto homônimo de Hilda Hilst e o que mais instigou foi justamente o olhar deste trio de atores.

Do olhar triste e sedento por piedade da protagonista aos olhares cínicos dos irmãos, no decorrer da narrativa, é de apodrecer junto à personagem escritora, de sentir suas fraquezas, e querer levantar-se da cadeira para acolhê-la, protegendo da crueldade dos irmãos. Mas seriam irmãos ou seu subconsciente? Escritora ou unicórnio? Sarna ou cacos de vidro? Hilda Hilst ou um personagem qualquer? Muitas são as dúvidas que ficam, mas algo é certo: o público não sai impassível do que ocorre na cena. É de levar um soco no estômago e refletir sobre a vida, sobre suas crenças e sobre a sanidade que buscamos ter.

Vejo o unicórnio por si só como um ser instigante. Na mitologia, apenas as jovens puras, e virgens, são capazes de se aproximar e domar este animal. Obviamente, o texto transformar a escritora em unicórnio é bastante sintomático, afinal, mostra o desejo da protagonista pela pureza, pelo amor verdadeiro, enquanto, como ocorre na vida fora da ficção, o que se vê é justamente a falácia do discurso, marcado fortemente pela crise de identidade. E nesta tensão, o papel dos irmãos é essencial por esfregar em sua cara a grande contradição. Em conflito, a personagem vai pouco a pouco esvaindo e, entre amor e excremento, tem o ápice de sua epifania: “eu acredito... eu acredito... eu acredito...”.

A autora, conhecida por temáticas pornográficas, faleceu em 2004 e deixou um grande legado para a literatura brasileira. Com sua vida pessoal marcada por várias crises, Hilda desenvolveu uma obra muitas vezes interpretada como autobiográfica. Em O unicórnio, há quem afirme ser ela a protagonista, trazendo seus conflitos pessoais em relação à orientação sexual para os personagens dos dois irmãos, como reflexos de seu subconsciente. O lado masculino pederasta e o lado feminino lésbica atormentando sua existência.  

Segundo Eliane Robert Moraes, professora da USP, com quem tive o prazer de ter aulas quando ainda trabalhava na PUC, “ela escreveu poemas místicos voltados a um plano divino e escreveu também uma pornografia deslavada. Ela realmente tem um traço de polarização que não existe em nenhum outro escritor ou poeta brasileiro”. Uma peça de teatro com texto de Hilda Hilst não é algo novo, mas a adaptação de O unicórnio para a cena, trazendo três personagens singulares, bem interpretados por atores com ótimas referências de corpo e interpretação, torna a produção única e merece ser prestigiada.


(O Unicórnio - Foto: Hellena Mello)


O unicórnio fica em cartaz até o dia 27 de outubro, todas as segundas-feiras, 21h, no Viga Espaço Cênico, na rua Capote Valente, 1323. Assistam, mas preparem-se, porque não será uma noite tranquila com cara de “novela das 8”. 




2 comentários:

  1. Tive mais ou menos a mesma sensação ao ver a protagonista no meio daquela tempestade. A peça me propôs um fluxo ininterrupto de reflexões. Quando eu me dei conta, minha vontade era de entrar lá, mas não necessariamente para reconfortá-la. Achei sintonia nesse fluxo, me vi como uma quarta face.
    Foi incrível o modo como fui carregada, engolida e repartida pelo enredo e pela interpretação dos atores. A humanidade carnal, racional e sacral representada aqui é convidativa e envolvente. Sensacional!

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