Por Igor Gasparini
“Não, não, havia uma certa escuridão no
olhar, principalmente quando ela estava perto dele. Do irmão? É. Ela tinha medo
do irmão? A escuridão vinha do medo? A escuridão talvez viesse do medo de se
sentir com medo” – O unicórnio, Hilda Hilst.
(O Unicórnio - Foto: Hellena Mello)
Na
última segunda, 29, estive no Viga Espaço Cênico, em Pinheiros, para assistir
ao espetáculo teatral O unicórnio,
dirigido por Christina Trevisan. Reconhecida por seu trabalho na área de
musicais, ao contrário do que se esperaria, a peça surpreende pelo drama
imposto pela sensível protagonista interpretada por Flávia Couto. Ao lado de
Frank Tavantti e Vivyan Albouquerque, a trama constrói-se a partir da adaptação
do texto homônimo de Hilda Hilst e o que mais instigou foi justamente o olhar deste trio de atores.
Do
olhar triste e sedento por piedade da protagonista aos olhares cínicos dos
irmãos, no decorrer da narrativa, é de apodrecer junto à personagem escritora,
de sentir suas fraquezas, e querer levantar-se da cadeira para acolhê-la,
protegendo da crueldade dos irmãos. Mas seriam irmãos ou seu subconsciente?
Escritora ou unicórnio? Sarna ou cacos de vidro? Hilda Hilst ou um personagem
qualquer? Muitas são as dúvidas que ficam, mas algo é certo: o público não sai
impassível do que ocorre na cena. É de levar um soco no estômago e refletir sobre
a vida, sobre suas crenças e sobre a sanidade que buscamos ter.
Vejo
o unicórnio por si só como um ser instigante. Na mitologia, apenas as jovens
puras, e virgens, são capazes de se aproximar e domar este animal. Obviamente,
o texto transformar a escritora em unicórnio é bastante sintomático, afinal,
mostra o desejo da protagonista pela pureza, pelo amor verdadeiro, enquanto,
como ocorre na vida fora da ficção, o que se vê é justamente a falácia do
discurso, marcado fortemente pela crise de identidade. E nesta tensão, o papel
dos irmãos é essencial por esfregar em sua cara a grande contradição. Em
conflito, a personagem vai pouco a pouco esvaindo e, entre amor e excremento,
tem o ápice de sua epifania: “eu acredito... eu acredito... eu acredito...”.
A autora,
conhecida por temáticas pornográficas, faleceu em 2004 e deixou um grande
legado para a literatura brasileira. Com sua vida pessoal marcada por várias
crises, Hilda desenvolveu uma obra muitas vezes interpretada como
autobiográfica. Em O unicórnio, há
quem afirme ser ela a protagonista, trazendo seus conflitos pessoais em relação
à orientação sexual para os personagens dos dois irmãos, como reflexos de seu
subconsciente. O lado masculino pederasta e o lado feminino lésbica
atormentando sua existência.
Segundo Eliane
Robert Moraes, professora da USP, com quem tive o prazer de ter aulas quando
ainda trabalhava na PUC, “ela escreveu poemas místicos voltados a um plano
divino e escreveu também uma pornografia deslavada. Ela realmente tem um traço
de polarização que não existe em nenhum outro escritor ou poeta brasileiro”. Uma
peça de teatro com texto de Hilda Hilst não é algo novo, mas a adaptação de O unicórnio para a cena, trazendo três
personagens singulares, bem interpretados por atores com ótimas referências de
corpo e interpretação, torna a produção única e merece ser prestigiada.
(O Unicórnio - Foto: Hellena Mello)
O unicórnio fica em cartaz até o dia 27
de outubro, todas as segundas-feiras, 21h, no Viga Espaço Cênico, na rua Capote
Valente, 1323. Assistam, mas preparem-se, porque não será uma noite tranquila
com cara de “novela das 8”.
Tive mais ou menos a mesma sensação ao ver a protagonista no meio daquela tempestade. A peça me propôs um fluxo ininterrupto de reflexões. Quando eu me dei conta, minha vontade era de entrar lá, mas não necessariamente para reconfortá-la. Achei sintonia nesse fluxo, me vi como uma quarta face.
ResponderExcluirFoi incrível o modo como fui carregada, engolida e repartida pelo enredo e pela interpretação dos atores. A humanidade carnal, racional e sacral representada aqui é convidativa e envolvente. Sensacional!
Bela palavras Bruna! De fato foi bastante forte! ;)
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