Por Igor Gasparini
Este
texto busca apresentar reflexões e ecoar algumas vozes sobre o trabalho Subterrâneo, do Gumboot Dance Brasil, dirigido por Rubens Oliveira e que teve sua
estreia no fim do mês de março no Teatro Anchieta, do SESC Consolação. Diversos
são os aspectos que merecem destaque nesta obra, especialmente, no que tange à
essência do trabalho de corpo, com ênfase na própria dança Gumboot de matrizes africanas, muito bem interpretada pelos
artistas do núcleo.
A energia
contagiante, característica marcante do grupo já em trabalho anterior, arrebata
o público que, mesmo antes de terminar, aplaude calorosamente a cada transição
de cena. Esta é a grande contribuição da companhia de dança: apresentar a dança
negra, de uma matriz africana pouco conhecida por aqui, e com uma energia que
faz com que o público se sinta extasiado, contemplado, feliz.
“Ouvimos
repetidas vezes do público que, conseguimos levá-los ao fundo da terra, que
sentiram no peito a vibração e a força da dança, trazendo risos, choros, dor e
alegria”, afirma Rubens Oliveira, diretor e coreógrafo da companhia. Esta
proximidade do público fica evidente também na quantidade de pessoas que
assistiram à Subterrâneo e lotaram o
teatro por duas semanas, algo que merece destaque, dada a dificuldade de
encontrar plateias numerosas em espetáculos de dança independente. Realço
também o bom trabalho desenvolvido pelo produtor Kelson Barros na divulgação,
produção e circulação da companhia, abrindo espaço para uma obra de dança
negra, com ótima bilheteria, em instituição como SESC-SP.
Segundo
Oliveira, “o Gumboot Dance é uma
dança totalmente musical e percussiva. Uma dança que traz uma complexidade
rítmica, além de exigir do corpo um bom condicionamento”. E isso se revela em
cena, visto que o trabalho é bastante sensorial. “Se você fechar os olhos você
sente, se tapar os ouvidos você sente. A vibração vinda a partir das batidas
das mãos nas botas é muito forte e energética”, complementa Oliveira.
Para além
desta experiência, é possível perceber a história de vida dos intérpretes, seja
no simples andar ou estar parado no palco. Quando dançam, o movimento é
carregado de simbologia, de história, de raízes, que embora tecnicamente
apresentem uma dança específica africana, a realidade é muito semelhante à
daqui. O pensamento contemporâneo clama por reflexões sobre o momento presente,
sobre violência, identidade, racismo; independentemente de qual matriz a dança
surja. E conforme assegura o diretor, “a pesquisa nasce justamente das
conversas entre os participantes do grupo, onde compartilhávamos histórias e
experiências em comum, por sermos negros e moradores das periferias de São
Paulo. Experiências de opressão, dificuldades, lutas, perdas, resistências e
uma vontade imensa de gritar”.
Tudo
isso merece destaque e mais que justifica a existência da obra. Por outro lado,
penso que o movimento de sair do espaço público, onde estavam mais acostumados
a circular com Yebo, e criar especificamente
para o palco, fez com que algumas escolhas dramatúrgicas fragilizassem a obra.
O trabalho é bastante recortado, com cenas que iniciam e terminam a cada
momento, prejudicando o desenvolvimento do espetáculo. Falta uma tessitura que
permeie a construção da dramaturgia e não se configure como uma colcha de
retalhos, semelhante ao que ocorre nas danças tradicionais clássicas.
Além disso,
algumas destas cenas buscam interpretar a dramaticidade do tema, com momentos
de sofrimento em que elenco, música, iluminação e outros elementos cênicos
reforçam e escancaram tais intenções. Porém, a grande característica do grupo,
a meu ver, é justamente a alegria que a dança emana. Dessa forma, os momentos
se alternam entre uma dramaturgia narrativa, tentando contar uma história densa,
e outros em que a própria dramaturgia do corpo se basta e, nestes, a dança por
si só já comunica, como no excelente início do trabalho em que todos dançam,
cantam e se divertem em uma espécie de ritual.
Jéssica
Alonso, artista da dança e público, afirma que o grande destaque para ela do
trabalho, está justamente na invocação de vários rituais. “Tribos africanas,
com sua força e sua vivacidade para encarar até os momentos mais inconsoláveis.
Rituais falados em sua língua própria, de revolta e de tristeza, ininteligíveis
para quem ouve, mas perceptíveis na sensação. Rituais de sobrevivência para
aguentar o calor, o cansaço e o desânimo quando parece que não se vai mais
aguentar. Rituais de integração, que consideram as diferenças mantendo as
individualidades. E, talvez o mais predominante para mim, rituais de
descontração para desanuviar as preocupações cotidianas, para relaxar a
musculatura depois de carregar sacos de carvão, para lidar com as faltas e as
perdas”.
E
não há ritual sem música, corpo e dança. Nisso, Subterrâneo é primoroso, demonstrando habilidade em dosar tais
elementos na construção da obra. É de
se destacar o trabalho qualificado dos músicos, o que contribui para a
experiência sensorial do público. Segundo Oliveira, foi bastante desafiador
equilibrar os vários elementos sonoros, visto que era necessário compensar a
captação do som das botas no chão, palmas, gritos e associá-los à música
interpretada ao vivo por Rodriko Bragança (violão), Maurício Oliveira
(percussão e sax) e Kiko Woiski (baixo). E de fato não há apenas um equilíbrio
sonoro, mas tudo contribui para contagiar quem assiste com diversos elementos
que convidam o público a dançar junto, ainda que permaneçam sentados.
Pasha
Gorbachev, artista da dança e público, concorda que a música ao vivo é um dos
destaques do trabalho, pois se torna inseparável dos artistas e contribui na
construção da experiência. E ainda complementa: “É um espetáculo muito poderoso,
com uma dança cheia de energia e que exige coordenação e memória requintada.
Algumas das escolhas de direção são comerciais, à beira de um show da Broadway;
e acho que isso fez com que me mantivesse na superfície e não me deixou
experimentar o profundo significado do trabalho. Mas vale muito a pena assistir”.
Definitivamente,
em tempos em que há forte retorno de ideais segregadores, o trabalho Subterrâneo cumpre mais que o seu papel artístico
de ser um espetáculo de dança, mas realoca o corpo negro em lugar de destaque, em
lugar de fala, de canto, de dança, de política pública de cultura. Algo que não
se pode deixar às margens, no subterrâneo, mas merece local de cada vez mais evidência,
emergindo à superfície deste mundo contemporâneo.
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