terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

Um incômodo prazer repetido por 595 vezes


Um incômodo prazer repetido por 595 vezes
Ensaio sobre Normal, da Alias-Guilherme Botelho

Por Igor Gasparini

Um grupo de sete bailarinos, três homens e quatro mulheres, permanece caindo e se levantando por uma hora de espetáculo. A princípio, parece apenas uma obra Normal, mas 595 quedas revelam que, em tempos sombrios, é importante continuar. O trabalho Normal (2018), da Companhia suíço-brasileira Alias-Guilherme Botelho, veio ao Brasil para apresentações na Bienal SESC de Dança, em Campinas, e no SESC Consolação, em São Paulo, em setembro de 2019, e deixou muita gente encantada pela fisicalidade dos intérpretes e pelo qualificado exercício de composição coreográfica criado em cena.


Pude assistir às apresentações nas duas cidades e, na segunda oportunidade, impressionado com a permanência exaustiva de cair e se reerguer, me dispus ao desafio de tentar contar. Obviamente, este não é um número preciso, mas o ato de lançar o corpo ao chão e recuperar por cerca de 600 vezes em 1 hora de espetáculo, por si só, já merece atenção. O elenco, muito afinado, realiza a ação com qualidade técnica e interpreta os diferentes momentos da obra, ora sérios, ora descontraídos, fazendo com que entremos em transe observando a repetida e inútil ação. Existe um exercício hipnótico que acompanha os intérpretes na cena e um sorriso sádico por um prazer incomum. Em determinado momento, o bailarinos já cansados, começam a rir e o público ri junto.

Quase imperceptivelmente, eles mudam qualidades desta ação: gestos são adicionados e resignificados, outros movimentos corporais surgem, testam diferentes maneiras de descer e subir, realizam distintas expressões faciais, deslocam-se gradativamente pelo espaço, se afastam, se aproximam, entre outras lentas mudanças que, no todo, resultam em uma singular composição coreográfica. A obra remete aos competentes exercícios coreográficos de Anne Teresa de Keersmaeker, em Rosas danst Rosas, mas aqui o gesto e a ação se concentram no constante descer ao nível baixo e voltar ao nível alto. As alterações são sutis, mas a ação principal permanece constante.

Outros elementos dramatúrgicos auxiliam na composição, como a trilha sonora que tem por objetivo criar uma ambientação cênica, sendo uma referência temporal para os bailarinos, mas não ditando de maneira óbvia os momentos de transição. A iluminação limpa, sem cores ou trocas constantes, também ajuda a criar um espaço de continuidade, sem as rupturas que costumamos encontrar em obras divididas por cenas. Em Normal, existe apenas um único black out ao final do trabalho para projeção do vídeo de encerramento: uma senhora conta uma história e faz uma piada com Albert Einstein, reafirmando o interesse da companhia por elementos metafísicos que dialogam com o viver cotidiano. Enquanto isso, os bailarinos continuam a cair, neste contra luz, até que o vídeo se encerra e, com ele, a experiência proposta pela obra.

Alias ​​é uma companhia de dança contemporânea independente criada em Genebra, em 1994, pelo dançarino e coreógrafo brasileiro Guilherme Botelho. Segundo informações do próprio site da companhia, suas criações ​​lançam um olhar astuto e intransigente sobre a vida cotidiana. É o que se pode perceber no cerne de Normal. A companhia assumiu a missão de pesquisar as aparências e os hábitos cotidianos e que, nesta obra, convida o público a lançar um olhar sobre o ato de cair. O que significa cair? É morrer ou deixar ir? Guilherme Botelho iniciou sua carreira em dança em São Paulo e questiona, por meio de suas criações, a realidade de nossa existência e explora os principais temas da condição humana.

Outro elemento de destaque na obra são os figurinos casuais que juntos parecem coesos, mas individualmente, são distintos entre si, revelando individualidades ainda que misturadas ao coletivo. O tecido escolhido para as roupas vai se desgastando ao longo da obra e, ao final, é possível ver os rasgos em algumas partes do corpo como joelhos e quadris. Penso ser uma metáfora bastante significativa se comparada ao tecido muscular: como estariam as fibras dos músculos destes bailarinos após quase 600 quedas? E se somássemos os outros dias de apresentação, ensaios, processo? Como lidar com a dor e ainda assim permanecer? O que a obra nos faz refletir?

Essas e outras perguntas são lançadas ao público que é informado desde a leitura do release sobre o que se trata a peça coreográfica: “Colapso, renovação, transformação. Um grupo de indivíduos cai em renovação, atraído hipnoticamente por uma força invisível. Uma metáfora da vida em constante movimento e transformação se torna progressivamente um manifesto”.  Mas, para além disso, a concretização do experimento se dá ao entrar em contato fisicamente com a obra, pois coloca o espectador em experiência sensorial por um hora, observando os corpos treinados, mas sentindo em si, a sensação do desgaste e o desafio da permanência,  destes, assistindo.

Essa característica se assemelha ao conceito de corpo vudú, desenvolvido em trabalhos do Grupo Cena 11, os bailarinos terminam exaustos, mas plenos, enquanto quem assiste sente o cansaço físico sem ter ido nenhuma vez ao chão. E há alguns que revelaram a vontade empática de testar a experiência, algo que considero destacável em uma obra artística, não apenas pela reflexão suscitada, mas pelo consequente convite a mover que causa nos corpos espectadores.

Tais reflexões se tornam possíveis a partir de uma obra que não lhe bombardeia com excessos de temas, propostas, sequências coreografadas, movimentos e mais movimentos. O simples esgotamento de um único assunto (e físico dos intérpretes) permite que cada espectador pare por uma hora, entre praticamente em estado de transe reflexivo, e contemple uma obra sobre a vida cotidiana. Imersos em uma realidade de excessos, consequência das tecnologias e dos ambientes online que modificaram diversos hábitos cognitivos, qualquer momento de pausa parece sinônimo de perda de tempo, gerando impaciência e intolerância nas relações. Havia pessoas inquietas na plateia, mexiam-se constantemente, se contorciam, um ou outro até desistiu de tal desafio e colocou-se a dormir recostado em ombro amigo. Mas esta é justamente outra das potentes contribuições desta obra: provocar no espectador um estado de contemplação-reflexão tão escasso nos dias de hoje. Um estado que merece atenção e abertura a persistência, como aqueles que caem em nossa frente.

A arte contemporânea deslocou o entendimento do que se chama de público porque rejeita o papel do espectador como aquele que se relaciona com a obra como consumidor, esperando ter os seus desejos atendidos. Ela retira-o da posição de quem quer receber, desfrutar, assistir a um espetáculo, que é tomado como sinônimo de obra a ser contemplada. Faz isso ao convocar o espectador a se perguntar do que a obra trata, a admitir que haja algo a ser nela desvendado, porque não está evidente, o que implica em tentar descobrir a visão de mundo que está sendo proposta. Ou seja, ao invés de apenas esperar receber o que deseja, o espectador é retirado do seu conforto passivo e convocado a agir, a desvendar as perguntas que a obra faz, a investigar que leitura de mundo ela propõe, precisando assumir uma postura diferente de apenas sentar-se e esperar ser agradado pelo que assiste. É preciso cair e levantar.

Com gestos que insistem,
Com gestos que desistem,
E sentir o incômodo prazer repetido por 595 vezes.


* Esse texto foi desenvolvido para a disciplina de História e Crítica de Dança do Programa de Pós Graduação da ECA-USP, ministrada por Henrique Rochelle e desenvolvida por mim como Aluno Especial.  

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