Um incômodo prazer repetido por 595 vezes
Ensaio sobre Normal, da Alias-Guilherme Botelho
Por Igor Gasparini
Um grupo de
sete bailarinos, três homens e quatro mulheres, permanece caindo e se
levantando por uma hora de espetáculo. A princípio, parece apenas uma obra Normal, mas 595 quedas revelam que, em
tempos sombrios, é importante continuar. O trabalho Normal (2018), da Companhia suíço-brasileira Alias-Guilherme Botelho,
veio ao Brasil para apresentações na Bienal SESC de Dança, em Campinas, e no
SESC Consolação, em São Paulo, em setembro de 2019, e deixou muita gente
encantada pela fisicalidade dos intérpretes e pelo qualificado exercício de
composição coreográfica criado em cena.
Pude assistir
às apresentações nas duas cidades e, na segunda oportunidade, impressionado com
a permanência exaustiva de cair e se reerguer, me dispus ao desafio de tentar
contar. Obviamente, este não é um número preciso, mas o ato de lançar o corpo
ao chão e recuperar por cerca de 600 vezes em 1 hora de espetáculo, por si só,
já merece atenção. O elenco, muito afinado, realiza a ação com qualidade
técnica e interpreta os diferentes momentos da obra, ora sérios, ora
descontraídos, fazendo com que entremos em transe observando a repetida e
inútil ação. Existe um exercício hipnótico que acompanha os intérpretes na cena
e um sorriso sádico por um prazer incomum. Em determinado momento, o bailarinos
já cansados, começam a rir e o público ri junto.
Quase
imperceptivelmente, eles mudam qualidades desta ação: gestos são adicionados e
resignificados, outros movimentos corporais surgem, testam diferentes maneiras
de descer e subir, realizam distintas expressões faciais, deslocam-se
gradativamente pelo espaço, se afastam, se aproximam, entre outras lentas
mudanças que, no todo, resultam em uma singular composição coreográfica. A obra
remete aos competentes exercícios coreográficos de Anne Teresa de Keersmaeker, em
Rosas danst Rosas, mas aqui o gesto e
a ação se concentram no constante descer ao nível baixo e voltar ao nível alto.
As alterações são sutis, mas a ação principal permanece constante.
Outros
elementos dramatúrgicos auxiliam na composição, como a trilha sonora que tem
por objetivo criar uma ambientação cênica, sendo uma referência temporal para
os bailarinos, mas não ditando de maneira óbvia os momentos de transição. A
iluminação limpa, sem cores ou trocas constantes, também ajuda a criar um
espaço de continuidade, sem as rupturas que costumamos encontrar em obras
divididas por cenas. Em Normal,
existe apenas um único black out ao final do trabalho para projeção do vídeo de
encerramento: uma senhora conta uma história e faz uma piada com Albert Einstein,
reafirmando o interesse da companhia por elementos metafísicos que dialogam com
o viver cotidiano. Enquanto isso, os bailarinos continuam a cair, neste contra
luz, até que o vídeo se encerra e, com ele, a experiência proposta pela obra.
Alias é uma companhia de
dança contemporânea independente criada em Genebra, em 1994, pelo dançarino e
coreógrafo brasileiro Guilherme Botelho. Segundo informações do próprio site da
companhia, suas criações lançam um olhar astuto e intransigente sobre a vida
cotidiana. É o que se pode perceber no cerne de Normal. A companhia assumiu a missão de pesquisar as aparências e os
hábitos cotidianos e que, nesta obra, convida o
público a lançar um olhar sobre o ato de cair. O que significa cair? É morrer
ou deixar ir? Guilherme Botelho iniciou sua carreira em dança em São Paulo
e questiona, por meio de suas criações, a realidade de nossa existência e explora
os principais temas da condição humana.
Outro elemento
de destaque na obra são os figurinos casuais que juntos parecem coesos, mas
individualmente, são distintos entre si, revelando individualidades ainda que
misturadas ao coletivo. O tecido escolhido para as roupas vai se desgastando ao
longo da obra e, ao final, é possível ver os rasgos em algumas partes do corpo
como joelhos e quadris. Penso ser uma metáfora bastante significativa se
comparada ao tecido muscular: como estariam as fibras dos músculos destes
bailarinos após quase 600 quedas? E se somássemos os outros dias de
apresentação, ensaios, processo? Como lidar com a dor e ainda assim permanecer?
O que a obra nos faz refletir?
Essas e outras
perguntas são lançadas ao público que é informado desde a leitura do release
sobre o que se trata a peça coreográfica: “Colapso, renovação, transformação.
Um grupo de indivíduos cai em renovação, atraído hipnoticamente por uma força
invisível. Uma metáfora da vida em constante movimento e transformação se torna
progressivamente um manifesto”. Mas,
para além disso, a concretização do experimento se dá ao entrar em contato fisicamente
com a obra, pois coloca o espectador em experiência sensorial por um hora,
observando os corpos treinados, mas sentindo em si, a sensação do desgaste e o
desafio da permanência, destes,
assistindo.
Essa
característica se assemelha ao conceito de corpo
vudú, desenvolvido em trabalhos do Grupo Cena 11, os bailarinos terminam
exaustos, mas plenos, enquanto quem assiste sente o cansaço físico sem ter ido
nenhuma vez ao chão. E há alguns que revelaram a vontade empática de testar a
experiência, algo que considero destacável em uma obra artística, não apenas pela
reflexão suscitada, mas pelo consequente convite a mover que causa nos corpos
espectadores.
Tais reflexões
se tornam possíveis a partir de uma obra que não lhe bombardeia com excessos de
temas, propostas, sequências coreografadas, movimentos e mais movimentos. O
simples esgotamento de um único assunto (e físico dos intérpretes) permite que
cada espectador pare por uma hora, entre praticamente em estado de transe
reflexivo, e contemple uma obra sobre a vida cotidiana. Imersos em uma
realidade de excessos, consequência das tecnologias e dos ambientes online que
modificaram diversos hábitos cognitivos, qualquer momento de pausa parece
sinônimo de perda de tempo, gerando impaciência e intolerância nas relações.
Havia pessoas inquietas na plateia, mexiam-se constantemente, se contorciam, um
ou outro até desistiu de tal desafio e colocou-se a dormir recostado em ombro
amigo. Mas esta é justamente outra das potentes contribuições desta obra:
provocar no espectador um estado de contemplação-reflexão tão escasso nos dias
de hoje. Um estado que merece atenção e abertura a persistência, como aqueles
que caem em nossa frente.
A arte
contemporânea deslocou o entendimento do que se chama de público porque rejeita
o papel do espectador como aquele que se relaciona com a obra como consumidor,
esperando ter os seus desejos atendidos. Ela retira-o da posição de quem quer
receber, desfrutar, assistir a um espetáculo, que é tomado como sinônimo de
obra a ser contemplada. Faz isso ao convocar o espectador a se perguntar do que
a obra trata, a admitir que haja algo a ser nela desvendado, porque não está
evidente, o que implica em tentar descobrir a visão de mundo que está sendo
proposta. Ou seja, ao invés de apenas esperar receber o que deseja, o
espectador é retirado do seu conforto passivo e convocado a agir, a desvendar
as perguntas que a obra faz, a investigar que leitura de mundo ela propõe,
precisando assumir uma postura diferente de apenas sentar-se e esperar ser
agradado pelo que assiste. É preciso cair e levantar.
Com gestos que
insistem,
Com gestos que
desistem,
E sentir o incômodo
prazer repetido por 595 vezes.
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