domingo, 29 de novembro de 2020

Processos de mediação professor–artista em tempos pandêmicos

Por Igor Gasparini

 

O ano de 2020 surpreendeu a todos com as consequências de uma pandemia global que, só no Brasil, já matou mais de 172.000 pessoas (número atualizado no momento da publicação deste texto). Todas as áreas foram afetadas drasticamente, mas dois setores continuam sentindo bastante as consequências do isolamento: a cultura e a educação. Diante deste cenário, esse artigo busca refletir sobre estratégias possíveis para pensar processos artísticos e formativos em tempos pandêmicos. Quais as possibilidades para o professor-artista hoje?

Talvez não só hoje, acredito na função do professor, do artista e do professor-artista, como mediador, como aquele que irá construir pontes para o aprendizado ativo de seus alunos. Segundo Jesus Martín-Barbero (2009), se pensarmos na própria etimologia da palavra mediação, temos como possibilidades de mediar: agir por, agir entre, colocar-se entre. O processo de mediação aqui proposto não significa fazer média e, ao contrário de imediatismo, que é negação, buscar uma resposta pronta que resulta no atropelamento das ações.

Dessa forma, proponho pensar a mediação sem ter respostas rápidas e prontas, mas de construir reflexão e estratégias para que o próprio indivíduo seja capaz de pensar por conta própria. E isso pode ser realizado, à distância, pelas telas. Tal condição mostra-se cada vez mais rara em contextos de educação tecnicista, aquela que prepara a pessoa exclusivamente para servir a um sistema capitalista neoliberal, qualificando para o trabalho. Por outra via, como já defendia Paulo Freire décadas atrás, a educação forma e transforma, fazendo o aprendiz questionar, inclusive, o seu papel social.

Para Martín-Barbero (2009b, p. 153), a mediação sempre possuiu mais relação com as dimensões simbólicas da construção do coletivo, envolvendo não apenas a cultura, mas também a sociedade e a política. De tal modo, estaria envolvida tanto nos processos de ensino-aprendizagem, quanto nos processos de fruição artística.

 

“A comunicação e a cultura constituem hoje um campo primordial de batalha política: o estratégico cenário que exige que a política recupere sua dimensão simbólica – sua capacidade de representar o vínculo entre os cidadãos, o sentimento de pertencer a uma comunidade – para enfrentar a erosão de ordem coletiva” (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 15).

 

Este dado importa bastante quando se leva em conta a tendência de atribuir dificuldade de comunicação somente para as linguagens artísticas, sobretudo as da arte contemporânea. Podemos levantar as seguintes questões: Como uma obra se faz entender? De que forma comunica? Qual é a natureza da comunicação que a linguagem corporal, que se utiliza de movimentos, tem capacidade de promover? É possível escapar da tirania do entendimento de que toda e qualquer comunicação precisa produzir significado no modelo da linguagem verbal? O jornalismo cultural pode/deve mediar obra e público? Qual o papel da educação? Ou do professor? E do professor-artista?

 

“o que cria plateia é a educação, uma política pública de promoção da arte que leve os espetáculos aonde houver gente que esteja faminta por eles, embora possa até não ter consciência disso, ou que faça com que as pessoas frequentem os espaços onde eles estão sendo apresentados. O jornal não produz a notícia; ele identifica o que é notícia e a divulga, em suas páginas, sob uma perspectiva que considere interessante a seus leitores, funcionando como um amplificador da informação” (RUBIN, Nani apud NORA, S., 2010, p. 43).

 

“A mediação teatral torna a plateia atenta à situação social em que o próprio teatro se encontra, dando a deixa para a plateia agir consequentemente. Ou, de acordo com o esquema artaudiano, faz com que eles abandonem a condição de espectador: eles não estão mais sentados diante do espetáculo, estão cercados pela cena, arrastados pelo círculo da ação, o que devolve a eles sua energia coletiva” (RANCIÈRE, 201029). 

 A arte contemporânea deslocou o entendimento do que se chama de público porque rejeita o papel do espectador como aquele que se relaciona com a obra como consumidor, esperando ter os seus desejos atendidos. Ela retira-o da posição de quem quer receber, desfrutar, assistir a um espetáculo, que é tomado como sinônimo de obra a ser contemplada. Faz isso ao convocar o espectador a se perguntar do que a obra trata, a admitir que haja algo a ser nela desvendado, porque não está evidente, o que implica em tentar descobrir a visão de mundo que está sendo proposta. Ou seja, ao invés de apenas esperar receber o que deseja, o espectador é retirado do seu conforto passivo e convocado a agir (RANCIÈRE, J. 2010[1]), a desvendar as perguntas que a obra faz, a investigar que leitura de mundo ela propõe, precisando assumir uma postura diferente de apenas sentar-se e esperar ser agradado pelo que assiste. Esta possivelmente seria uma das possibilidades de ação dos professores-artistas, mediando o encontro dos alunos com as obras de arte, ainda que distantes pela tela.

A dificuldade de uma comunicação não imediata com o público precisa ser enfrentada, e a repetição de oportunidades de encontro com as produções artísticas contemporâneas tem papel importante na necessidade de criar-se um novo hábito. Se o treinamento hoje é pelo distanciamento social e pelo excesso de telas, outra possível ação dos professores-artista seria a conscientização dos problemas envolvidos nestas práticas, vislumbrando o reencontro físico e com as obras de artes quando seguro for.

E tais reflexões advêm de duas décadas de trabalho contínuo na arte e na educação, acreditando na função que podem desempenhar, desde a infância, caso trabalhassem de forma consistente e continuada os diversos fazeres da arte, incluindo as manifestações contemporâneas. Ao não fazer deste modo, impede-se o desenvolvimento de uma familiaridade com a produção artística. Juntando-se a omissão da educação com o tipo de tratamento das manifestações artísticas praticado nas diversas mídias, não há encontros com essa outra maneira de pensar presente na arte contemporânea. Assim, dificilmente ela se tornará mais popular. E o momento é de agravamento da situação, visto que o Brasil é um país um tanto desigual, o que impede que os processos de mediação pelas telas sejam amplos e democráticos. E dessa forma, nós, professores-artistas, talvez tenhamos ainda mais desafios a enfrentar neste momento pandêmico atual. Não desistamos!

 

Referências Bibliográficas:

MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. 6ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 2009.

MARTÍN-BARBERO, J. A comunicação na Educação. São Paulo: Contexto, 2014. 

NORA, S. Temas para a Dança Brasileira. São Paulo: Edições SESC SP, 2010.

RANCIÈRE, J. O espectador emancipado. [S.l.]: Olho Negro, 2010.

SIQUEIRA, D. D. C. O. Corpo, Comunicação e Cultura: a dança contemporânea em cena. Campinas: Autores Associados, 2006.

Cito, para finalizar, uma experiência de realização de processos criativos em dança e de mediação realizada pelo T.F.Style Cia de Dança, inspirada pelos Programas Performativos, desenvolvidos por Eleonora Fabião:

https://tfstyleciadedanca.blogspot.com/     

 



[1] RANCIÈRE, J. O espectador emancipado. [S.l.]: Olho Negro, 2010.

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