sábado, 22 de fevereiro de 2014

Falando sobre Dança Contemporânea


Por Igor Gasparini


            Há quem diga que arte contemporânea pode ser tudo; ou que, por ser “qualquer coisa”, não é nada. Obviamente, esse é um olhar raso com relação à produção artística contemporânea que, na maioria dos casos, traz um contexto crítico atrelado às suas obras. Na dança não é diferente. Em um mundo no qual o que chega às pessoas é a dança dos famosos, torna-se complicado o entendimento de qual seria o “papel” do público de dança. Aquela plateia que assiste passivamente a um espetáculo de dança esperando que seja contada uma história - assim como na novela das 9 - sai frustrada do teatro. O olhar para a dança contemporânea vai muito além disso, pois perpassa por uma posição ativa, crítica e reflexiva sobre o objeto apresentado. Para Denise da Costa Oliveira Siqueira, professora e pesquisadora da Faculdade de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em seu livro Corpo, comunicação e cultura – a dança contemporânea em cena,

“além de expressão da sociedade e da cultura, a dança cênica é arte, portanto, simbólica, e porta significações que transcendem o valor estético espetacular. Movimentos construídos coreograficamente e repetidos em cena contam histórias, revelam problemas ancestrais ou contemporâneos. São uma forma de expressão e comunicação complexa, pois envolvem valores e preconceitos, refletem o contexto histórico, econômico, cultural e educativo e podem suscitar discussão. Assim, o espetáculo de dança pode ser compreendido como parte de um sistema cultural e social maior, com o qual troca informações, modificando-se, transformando-se.” (SIQUEIRA, 2006, p. 5).


(Espetáculo Tempo - T.F.Style Cia de Dança)


            Para Kathya Maria Ayres de Godoy, professora e pesquisadora da Unesp, bailarina desde a infância, a dança contemporânea não é livre, não pode ser tudo, uma vez que sendo arte, possui uma linguagem estruturada e codificada.

“A questão é que sendo uma dança da contemporaneidade, está em um período em que ainda há descobertas de formas de fazer dança e isso pode ser livre, mas essa liberdade deve ser consciente no sentido de que a dança não pode deixar de comunicar por meio de movimentos corporais” (GODOY, 2008, p. 4 – em entrevista realizada por Igor Gasparini para o Jornal da Dança – RJ – Edição 110 – Junho de 2008).

             Segundo a pesquisadora, a dança contemporânea está em constante descoberta com o objetivo de agregar linguagens, está em aberto, e se trata de uma comunicação viva e em transformação.

Milton Coatti, bailarino do Balé da Cidade de São Paulo, possui opinião convergente: “Se eu disser que tudo pode, estarei mentindo, mas se eu disser que não, também”. Para ele, deve haver responsabilidade de quem trabalha, além de bom senso coreográfico. Mesmo que para o criador certos movimentos tenham sentido, esses devem ser contextualizados. “A microdança, as pausas demasiadamente longas, as falas ou o nu, por exemplo, precisam estar dentro desse contexto”, defende. Assim, é notável a defesa de que o trabalho no palco deve fazer parte de um todo previamente estabelecido entre coreógrafo e bailarinos. Entretanto, o quanto este contexto pode ser percebido por cada uma das pessoas que constitui o público é que se mostra intrigante.

Ainda para Coatti “a diferença emerge de como cada profissional caracterizará o seu trabalho e, independentemente do espaço, é preciso saber o que tirar de cada movimento, como será cada movimentação, preocupando-se com o sentido e com a conversa entre as ideias”.

Henrique Rodovalho, coreógrafo da Quasar Cia de Dança, em entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo, opinou sobre a relação da dança com o seu público:  "precisava sair um pouco dessa coisa quase inatingível que está se tornando a dança, muito conceitual, e ir ao encontro do público". Rodovalho justificou suas intenções com o mais recente trabalho da companhia, “No singular”, que estreou no ano de 2012.

Andréa Pivatto, diretora do grupo Divinadança defende: “existe a verdade do criador, mas eu acredito que deva haver definições em cena, o processo de criação pode ser rico, mas é o público que faz o artista”, afirma ela. A singularidade da dança está na ação corporal. Para Andréa, é uma arte visual, estética, mas principalmente atrelada ao movimento que, mesmo sutil, deve acontecer. Segundo ela, a dança contemporânea pode ser entendida pelo processo de construção da cena, não apenas nas finalizações, mas pela ligação entre as ideias, o que trará densidade.

            Definir e instituir signos na dança não é tarefa fácil, porém cabe ao artista criador a tarefa de fazê-los existir.  Conversando com o que propõe Rancière, Brecht, já defendia, em 1972, que o público precisava manter-se ativo na recepção de um espetáculo e não apenas assisti-lo passivamente. Ele afirma que, se quiser chegar à fruição artística, nunca basta querer consumir confortavelmente e sem muito trabalho o resultado da produção artística; é necessário assumir parte da própria produção, estar num certo grau produtivo, ‘permitir certo dispêndio de imaginação’, associar sua experiência pessoal à do artista ou opor-se à ela.

A relação entre espectador e obra de arte também é descrita por Mannoni, que define o local do espectador:

“o teatro é, a primeira vista, o lugar da exterioridade onde se contempla impunemente uma cena, mantendo-se a si mesmo à distância. É, segundo Hegel, o lugar da objetividade e também aquele do confronto entre palco e plateia; logo, aparentemente, é um espaço exterior, visível e objetivo. Mas o teatro é também o local no qual o espectador deve projetar-se (catarse, identificação). A partir de então, como que por osmose, o teatro se torna espaço interior, ‘a extensão do ego com todas as suas possibilidades” (MANNONI apud PAVIS, 2007, p. 136).

Assim, tudo o que é levado à cena repercutirá de alguma forma na interpretação do espectador - situação que deve ser levada em conta pelos artistas nela envolvidos. “O efeito de uma performance artística sobre o espectador, observa Brecht, não é independente do efeito do espectador sobre o artista. No teatro, o público regula a representação” (BRECHT, 1976, p. 265).

Ainda para o autor, o olhar e o desejo dos espectadores dão sentido à cena, pois lida por uma multiplicidade variável de enunciadores. O prazer do espectador, face a essas instâncias da enunciação, é variado: ser enganado pela ilusão, acreditar e não acreditar, regressar a uma situação infantil onde o corpo imóvel experimenta, sem demasiados riscos, situações perigosas, situações aterrorizantes ou valorizantes. O espectador está consciente das convenções (quarta parede, personagem, concentração dos efeitos e da dramaturgia). Ele poderia (em teoria) intervir no palco, pode aplaudir ou vaiar, mas não é isso que geralmente ocorre. 

“A mediação teatral torna a plateia atenta à situação social em que o próprio teatro se encontra, dando a deixa para a plateia agir consequentemente. Ou, de acordo com o esquema artaudiano, faz com que eles abandonem a condição de espectador: eles não estão mais sentados diante do espetáculo, estão cercados pela cena, arrastados pelo círculo da ação, o que devolve a eles sua energia coletiva” (RANCIÈRE, 20122).  

Por outra linha de pensamento, Michael Kirby, estudioso que lecionou na Universidade de Nova York, afirma que, consciente ou inconscientemente, existe comunicação entre obra e público, pois mesmo que não haja a intenção real do artista em passar determinada mensagem, se o público a interpreta de tal forma, a comunicação está presente. E ainda acrescenta que a criação de uma performance não é, na maioria dos casos, um ato espontâneo, mas sim, envolve ensaios; logo, não é aleatório. “Uma peça, ou qualquer obra de arte, pode ter várias interpretações sem ter uma ‘correta’; ‘mensagens’ contraditórias podem ser igualmente corretas” (KIRBY, 201111).


(Espetáculo Tempo - T.F.Style Cia de Dança)


O coreógrafo Paulo Caldas, da Staccato Companhia de Dança, em entrevista a Siqueira (2006), afirma que pensa no termo “expressão” ao referir-se à relação com o público, já que “o libera para conteúdos mais fluidos, mais claros, mais plurais”. A abertura a leituras diferentes, a possíveis interpretações, a produção de significações diferentes, movem a relação com o público e, segundo ele, essa relação da dramaturgia

“acaba se dando mais como um efeito colateral do que como uma preocupação. Uma vez colocada essa questão na obra, as consequências de visibilidade, de legibilidade, de expressão, de comunicação são quase um efeito colateral. Isso não significa que o espetáculo não esteja comunicando. Está. Independentemente da vontade do criador”. (SIQUEIRA, 2006, p. 161).

Outra coreógrafa que defende semelhante opinião é Márcia Milhazes que afirma se preocupar com o público com intenção de tocá-lo. Ela afirma que “quer que ele (o público) possa ter a chance de entrar naquele universo pelo qual passei, naquele processo árduo e precioso pelo qual passei. A obra não está sendo feita para mim, não tem esse sentido egoísta” (SIQUEIRA, 2006, p. 187). Assim, Milhazes dedica seus espetáculos a essa plateia e quer que seu público esteja junto com ela, dialogando, os instigando a cada momento, algo bastante semelhante ao que venho defendendo desde o início da presente monografia.
Deborah Colker concorda com tais pensamentos, explica que realmente tem a intenção de comunicar, e apresenta sua opinião de maneira bastante radical:

“É, não tenho pouca, tenho muita. Tenho totalmente a intenção. [...] Existem pessoas por aí que acham que fazer um espetáculo difícil para o público é mais inteligente, mais sofisticado. Será que fazer um espetáculo que se comunique mais rápido, mais facilmente, não é muito mais difícil, muito mais difícil? [...] Acho que um espetáculo acontece quando a comunicação se estabelece. [...] Sou mais radical, acho que quem diz que não tem a intenção de comunicar está sendo ingênuo ou, digamos assim, ignorante” (SIQUEIRA, 2006, p. 204 e 205).

           
Referências:

KIRBY, M. Performance Não-Semiótica. 11. Ed. Vol. 11. Sala Aberta – Artigo 3, 2011.

PAVIS, P. Dicionário de Teatro. 3. ed. Editora Perspectiva: [s.n.], 2007.

RANCIÈRE, J. O espectador emancipado. [S.l.]: Olho Negro, 2010.

SIQUEIRA, D. D. C. O. Corpo, Comunicação e Cultura: a dança contemporânea em cena. Campinas: Autores Associados, 2006.

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