terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Eu não gosto de atendentes de supermercado!


Uma reflexão sobre corpo, dança, intolerância e hábitos cognitivos.

Por Igor Gasparini


            Ao realizar a disciplina "Mídias e impactos socioculturais: corpos, presença, avatares, subjetividades e o mal-estar nos ambientes midiáticos" no mestrado, deparei-me com perguntas que me pareciam sem resposta clara e objetiva, mas que me fariam refletir ao longo dos meses. Quem sou eu neste mundo online/offline? Que corpo é esse? Qual o sujeito deste ambiente? Logo de início, constatei que a vida digital extrapola o computador e está enraizada em nossos corpos. Um bom começo. Mas ainda distante de algum lugar... E a inquietação fez a reflexão prosseguir.

            O segundo desafio foi o de relacionar tais reflexões com a pesquisa em andamento sobre o corpo e o jornalismo cultural nos processos de comunicação com o espectador. Mas logo reconheci que o corpo, objeto de estudo da minha dissertação, sendo mídia de si mesmo (Teoria Corpomídia de KATZ e GREINER), está sempre comunicando quais informações o constituem em cada momento. E este é o momento de maior permeabilidade entre online/offline.

            As muitas horas dedicadas ao ambiente digital, nos mais diversos dispositivos, desencadeiam mudanças significativas no corpo e promovem alterações cognitivas substanciais neste homem contemporâneo. Tornou-se natural realizar muitas coisas ao mesmo tempo, bem como em uma tela de computador com várias janelas e hiperlinks, o corpo adaptou-se a uma nova realidade, alterando nossa capacidade de atenção. Como consequência, pessoas cada vez mais intolerantes, visto que qualquer momento de pausa, qualquer situação que lhe faça parar por alguns segundos, tornou-se sinônimo de “perda de tempo”. A moça do caixa do supermercado não consegue encontrar o código de barras no produto? O leitor não identifica?  Socorro! Tirem-me daqui antes que eu mate essa mulher!




            Uma situação como essa é apenas um exemplo de como a vida offline é hoje um reflexo do que ocorre online (se é que ainda podemos separar), pois uma está contaminada pela outra. O leitor de código de barras e a página que não abre na internet são sinônimos de “perda de tempo” e a sensação é de que isso não pode, de maneira alguma, ocorrer.

            Ao assistir a um filme antigo, por exemplo, o corpo estranha a lentidão. É incômodo e desconfortável fisicamente, visto que o corpo sente falta dos excessos, das múltiplas imagens e do barulho intermitente já adaptados em nossas vidas. Perde-se a paciência muito rapidamente, e isso gera mais intolerância nas relações sociais. 

Segundo o filósofo Roberto Esposito, essa realidade gera um “comportamento imunizado”, fazendo com que os indivíduos estejam “blindados” para viver em sociedade. É tudo muito rápido e não se pode perder tempo, então, experimenta-se do mal para, ao encontrá-lo, não ter novas consequências. Em termos culturais, todos estão sempre prevenidos, mas ao mesmo tempo, cada vez mais impacientes. Para ele, as pessoas estão imunizadas da possibilidade de estarem juntas, não sendo mais possível viver em comunidade.

“Isto que vai imunizada, em suma, é a comunidade mesma em uma forma que juntamente a conserva e a nega – ou melhor, a conserva através da negação de seu originário horizonte de sentido. Deste ponto de vista se poderia chegar a dizer que a imunização, mais que um aparato defensivo sobreposto à comunidade, está em sua engrenagem interna. [...] Para sobreviver, a comunidade, cada comunidade, é constrangida a introjetar a modalidade negativa do próprio oposto; ainda que tal oposto permaneça um modo de ser, na verdade privativo e contrastante, da comunidade mesma” (ESPOSITO, 2004, p. 48-49).

O “eu” ganha força e o “ser em sociedade” torna-se cada vez mais raro, uma vez que os hábitos cognitivos são insuflados apenas pelo “eu”, pelos desejos individuais, pelos interesses egóicos, passando a não existir vida compartilhada. Consigo perceber essa “imunização” na atuação de muitos coreógrafos de dança. Preocupados apenas com a própria criação (“eu”), desconsideram o papel social que a arte possui ao entrar com comunicação com o público.

E mesmo que o propósito dos envolvidos com a dança não seja o de buscar um significado específico para um espetáculo, defendo que se mantenha uma postura cuidadosa com relação à criação, com consequente necessidade de zelar para o que aqui estou nomeando de “vontade comunicativa”. Uma obra que apenas massageia o ego artístico de cada intérprete ou coreógrafo, sem levar em conta seu compromisso com o outro (com o público para o qual se apresenta), a quem deveria propor um diálogo estético de interesse coletivo, deve ser repensada para abrigar essa preocupação, sem que isso signifique desistir de seus propósitos artísticos. Na mesma linha de defesa, Hegel, em O belo artístico ou o ideal, defende que “deva haver um acordo entre a subjetividade e o contexto, pois a obra deve dialogar com o público”. (HEGEL apud SIQUEIRA, 2006, p. 86).

Partindo, então, da premissa que todo espetáculo comunica algo (mesmo que seja o interesse egóico de seu criador) e que esse algo está sempre chegando ao público de alguma forma – sendo essa a razão que sustenta a necessidade do criador manter uma atenção sobre a forma de comunicar as suas propostas artísticas – vale lembrar que há muitas instâncias participando da comunicação entre obra e público e que, dentre elas, o corpo tem um papel de destaque, esse corpo online/offline com todas as suas características de um, de outro, e de ambos os contextos.

As artes enfrentam hoje uma dificuldade suplementar, que é a de conseguir fazer com que um possível interessado naquilo que cada uma delas propõe consiga abrir esse tipo de espaço e de tempo em sua vida; pois se vive o mundo da aceleração constante e do deletar tudo o que desagrada ou não capta a atenção instantaneamente. A plateia dos espetáculos de dança se forma, atualmente, com os que vivem essa realidade; daí a necessidade de se compreender a dificuldade em conseguir criar esse momento de pausa no dia a dia, que dificulta a possibilidade de se viver o encontro com a dança como uma experiência transformadora. Isso reflete diretamente na dificuldade de atingir um público maior e mais diversificado para a dança, algo a ser considerado pelos artistas e coreógrafos.

Refletindo sobre esse conceito de “deletar”, o termo, por si só, já se refere a uma ação realizada no ambiente online, porém, foi incorporado ao dia a dia como algo da vida offline. No primeiro, o desejo regula a ação: não gostou, deleta. Neste outro local, porém, não é possível “deletar”, há a necessidade de tolerância. Infelizmente, não posso mandar a atendente do supermercado para a lixeira, então, o jeito é conviver (viver com), algo exclusivo da realidade offline.



Referências

ESPOSITO, R. Bíos: biopolitica e filosofia. Torino: Einaudi, 2004.

ESPOSITO, R. Community, Immunity, Biopolitics. Terms of the Political. New York: Fordham University Press, 2013.


SIQUEIRA, D. D. C. O. Corpo, Comunicação e Cultura: a dança contemporânea em cena. Campinas: Autores Associados, 2006.

Nenhum comentário:

Postar um comentário