Uma reflexão sobre
corpo, dança, intolerância e hábitos cognitivos.
Por Igor Gasparini
Ao realizar a disciplina "Mídias e impactos socioculturais: corpos, presença, avatares, subjetividades e o mal-estar nos ambientes midiáticos" no mestrado, deparei-me com perguntas que me pareciam sem resposta clara e
objetiva, mas que me fariam refletir ao longo dos meses. Quem sou eu
neste mundo online/offline? Que corpo
é esse? Qual o sujeito deste ambiente? Logo de início, constatei que a vida
digital extrapola o computador e está enraizada em nossos corpos. Um bom
começo. Mas ainda distante de algum lugar... E a inquietação fez a reflexão
prosseguir.
O segundo
desafio foi o de relacionar tais reflexões com a pesquisa em andamento sobre o
corpo e o jornalismo cultural nos processos de comunicação com o espectador.
Mas logo reconheci que o corpo, objeto de estudo da minha dissertação, sendo
mídia de si mesmo (Teoria Corpomídia de KATZ e GREINER), está sempre
comunicando quais informações o constituem em cada momento. E este é o momento
de maior permeabilidade entre online/offline.
As muitas
horas dedicadas ao ambiente digital, nos mais diversos dispositivos, desencadeiam
mudanças significativas no corpo e promovem alterações cognitivas substanciais
neste homem contemporâneo. Tornou-se natural realizar muitas coisas ao mesmo
tempo, bem como em uma tela de computador com várias janelas e hiperlinks, o
corpo adaptou-se a uma nova realidade, alterando nossa capacidade de atenção.
Como consequência, pessoas cada vez mais intolerantes, visto que qualquer
momento de pausa, qualquer situação que lhe faça parar por alguns segundos,
tornou-se sinônimo de “perda de tempo”. A moça do caixa do supermercado não
consegue encontrar o código de barras no produto? O leitor não identifica? Socorro! Tirem-me daqui antes que eu mate essa
mulher!
Uma situação
como essa é apenas um exemplo de como a vida offline é hoje um reflexo do que ocorre online (se é que ainda podemos separar), pois uma está contaminada
pela outra. O leitor de código de barras e a página que não abre na internet
são sinônimos de “perda de tempo” e a sensação é de que isso não pode, de maneira
alguma, ocorrer.
Ao assistir
a um filme antigo, por exemplo, o corpo estranha a lentidão. É incômodo e
desconfortável fisicamente, visto que o corpo sente falta dos excessos, das
múltiplas imagens e do barulho intermitente já adaptados em nossas vidas.
Perde-se a paciência muito rapidamente, e isso gera mais intolerância nas
relações sociais.
Segundo o filósofo Roberto Esposito,
essa realidade gera um “comportamento imunizado”, fazendo com que os indivíduos
estejam “blindados” para viver em sociedade. É tudo muito rápido e não se pode
perder tempo, então, experimenta-se do mal para, ao encontrá-lo, não ter novas
consequências. Em termos culturais, todos estão sempre prevenidos, mas ao mesmo
tempo, cada vez mais impacientes. Para ele, as pessoas estão imunizadas da
possibilidade de estarem juntas, não sendo mais possível viver em comunidade.
“Isto que vai imunizada, em suma, é a
comunidade mesma em uma forma que juntamente a conserva e a nega – ou melhor, a
conserva através da negação de seu originário horizonte de sentido. Deste ponto
de vista se poderia chegar a dizer que a imunização, mais que um aparato
defensivo sobreposto à comunidade, está em sua engrenagem interna. [...] Para
sobreviver, a comunidade, cada comunidade, é constrangida a introjetar a
modalidade negativa do próprio oposto; ainda que tal oposto permaneça um modo
de ser, na verdade privativo e contrastante, da comunidade mesma” (ESPOSITO,
2004, p. 48-49).
O “eu” ganha força e o “ser em
sociedade” torna-se cada vez mais raro, uma vez que os hábitos cognitivos são
insuflados apenas pelo “eu”, pelos desejos individuais, pelos interesses
egóicos, passando a não existir vida compartilhada. Consigo perceber essa
“imunização” na atuação de muitos coreógrafos de dança. Preocupados apenas com
a própria criação (“eu”), desconsideram o papel social que a arte possui ao
entrar com comunicação com o público.
E mesmo que o propósito dos
envolvidos com a dança não seja o de buscar um significado específico para um
espetáculo, defendo que se mantenha uma postura cuidadosa com relação à
criação, com consequente necessidade de zelar para o que aqui estou nomeando de
“vontade comunicativa”. Uma obra que apenas massageia o ego artístico de cada
intérprete ou coreógrafo, sem levar em conta seu compromisso com o outro (com o
público para o qual se apresenta), a quem deveria propor um diálogo estético de
interesse coletivo, deve ser repensada para abrigar essa preocupação, sem que
isso signifique desistir de seus propósitos artísticos. Na mesma linha de
defesa, Hegel, em O belo artístico ou o ideal, defende que “deva haver um
acordo entre a subjetividade e o contexto, pois a obra deve dialogar com o
público”. (HEGEL apud SIQUEIRA, 2006, p. 86).
Partindo, então, da premissa que todo
espetáculo comunica algo (mesmo que seja o interesse egóico de seu criador) e
que esse algo está sempre chegando ao público de alguma forma – sendo essa a
razão que sustenta a necessidade do criador manter uma atenção sobre a forma de
comunicar as suas propostas artísticas – vale lembrar que há muitas instâncias
participando da comunicação entre obra e público e que, dentre elas, o corpo
tem um papel de destaque, esse corpo online/offline
com todas as suas características de um, de outro, e de ambos os contextos.
As artes enfrentam hoje uma
dificuldade suplementar, que é a de conseguir fazer com que um possível
interessado naquilo que cada uma delas propõe consiga abrir esse tipo de espaço
e de tempo em sua vida; pois se vive o mundo da aceleração constante e do deletar
tudo o que desagrada ou não capta a atenção instantaneamente. A plateia dos
espetáculos de dança se forma, atualmente, com os que vivem essa realidade; daí
a necessidade de se compreender a dificuldade em conseguir criar esse momento
de pausa no dia a dia, que dificulta a possibilidade de se viver o encontro com
a dança como uma experiência transformadora. Isso reflete diretamente na
dificuldade de atingir um público maior e mais diversificado para a dança, algo
a ser considerado pelos artistas e coreógrafos.
Refletindo sobre esse conceito de
“deletar”, o termo, por si só, já se refere a uma ação realizada no ambiente online, porém, foi incorporado ao dia a
dia como algo da vida offline. No
primeiro, o desejo regula a ação: não gostou, deleta. Neste outro local, porém,
não é possível “deletar”, há a necessidade de tolerância. Infelizmente, não
posso mandar a atendente do supermercado para a lixeira, então, o jeito é
conviver (viver com), algo exclusivo da realidade offline.
Referências
ESPOSITO, R. Bíos:
biopolitica e filosofia. Torino: Einaudi, 2004.
ESPOSITO, R. Community, Immunity, Biopolitics. Terms
of the Political. New York: Fordham University Press, 2013.
SIQUEIRA, D. D. C. O. Corpo,
Comunicação e Cultura: a dança contemporânea em cena. Campinas: Autores
Associados, 2006.
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