Por Igor Gasparini
O
9º Festival Contemporâneo de Dança (FCD), dentre os trabalhos convidados,
apresentou uma mostra do repertório de Wagner Schwartz, artista brasileiro
residente na França que, na última sexta (11), esteve em cena com La Bête (O Bicho), no palco da Galeria
Olido. A performance busca uma relação ativa na participação do público e é
nesta interação que desenvolve sua dramaturgia. A partir da réplica de plástico
de uma escultura da série Bichos (1960)
de Lygia Clark, Schwartz entrega seu corpo nu ao público para que moldem suas
formas, manipulando-o como se alterassem os segmentos articulados dos “bichos” de Clark.
Wagner Schwartz em La Bête (O Bicho) - Foto: Humberto Araújo
Muitos são os autores que se detiveram a
estudar o espectador como agente ativo na concepção de uma obra, abandonando
uma postura passiva de quem espera ou
cria expectativas quanto àquilo que será apresentado. A obra O espectador emancipado (2010), de
Jacques Rancière, é uma delas:
“A
condição do espectador é uma coisa ruim. Ser um espectador significa olhar para
um espetáculo. E olhar é uma coisa ruim, por duas razões. Primeiro, olhar é
considerado o oposto de conhecer. Olhar significa estar diante de uma aparência
sem conhecer as condições que produziram aquela aparência ou a realidade que
está por trás dela. Segundo, olhar é considerado o oposto de agir. Aquele que
olha para o espetáculo permanece imóvel na sua cadeira, desprovido de qualquer
poder de intervenção. Ser um espectador significa ser passivo. O espectador
está separado da capacidade de conhecer, assim como ele está separado da
possibilidade de agir”. (RANCÈRE, 2010).
A postura do público diante do
corpo nu de Wagner Schwartz suscita algumas reflexões: quais os limites deste
corpo? Quais os tabus envolvidos? Interagir com o artista, por si só, torna-lhe
um espectador emancipado? Entre outras questões que fiquei me perguntando
enquanto observava atentamente as múltiplas reações dos presentes, nem tanto do
artista.
Ao
menos nesta sessão em que estive presente, todas as interações foram extremamente
cautelosas. Mexiam em seus braços e pernas como se manipulassem um objeto de
cristal. Por duas vezes o intérprete quase desmoronou, mas as pessoas, de
prontidão, evitaram a queda. E eu me perguntando: por quê? Qual a razão deste
excesso de zelo com o corpo de um artista que se coloca em cena entregue à sua
arte? O que ocorreria se deixássemos esse corpo cair? Ou ainda, quais seriam as
saídas caso alguém o colocasse em uma posição desconfortável e por lá permanecesse
por algum tempo? Infelizmente, não foi possível ver este corpo sendo desafiado,
havia sempre alguém muito ansioso a mexer e mexer no brinquedo que ali
descobriu. Por uma hora. Sem grandes mudanças ou surpresas.
Com
a mesma ansiedade com que os presentes interagiam com seu bicho, um homem por vezes ainda estimulava: “Vamos gente! Não
precisa ter vergonha! Vai lá! (...)” Enquanto fazia a sua forma de interação,
pela fala, Wagner era manipulado ora de pé, ora sentado, ora deitado... Até que
uma moça resolveu experimentar ser bicho também. Algo ali parecia se revelar em outra
ordem, com uma nova possibilidade de corpo, que agora este “espectador” passava
a experimentar junto ao artista. Após algumas interações, o homem falastrão que
até então não havia se levantado, adentrou à cena, mas para mexer no bicho fêmea. Obviamente, agora estava
autorizado a manipular. Antes não, pois se tratava de um corpo nu masculino. Já
no feminino, pode. E isso diz muito sobre nossa sociedade e cabe grande
reflexão.
Outra
questão evidente refere-se ao tabu que ainda há na relação das pessoas com
corpo nu. Muitos mexeram em sua cabeça, braços e pernas, mas ninguém se
aproximou de sua região pélvica, de seu quadril, sendo que a nudez não era uma
mera arbitrariedade. Mais uma vez, pouca surpresa. Não por parte do artista,
mas de seu público.
Wagner Schwartz em La Bête (O Bicho) - Foto: Humberto Araújo
André
Lepecki, em seu texto Coreopolítica e
Coreopolícia (2012), apresenta os conceitos de política e polícia a partir
dos filósofos Jacques Rancière e Giorgio Aganben para suscitar a potente
reflexão de que para se fazer política, é preciso parar, pensar, debater e refletir
em conjunto, no espaço público. Enquanto a polícia seria a responsável por
manter o fluxo, um movimento contínuo que não permite reflexão, apenas está
condicionado a obedecer as normas, seguir as regras, manter a ordem, respeitar
as tradições e os bons costumes.
“Vamos
considerar aqui “polícia” um ator social na coreopolítica do urbano atual, uma
figura sem a qual não é de todo possível pensar se a governamentabilidade
moderna. Uma figura também cheia de movimento, particularmente o ambíguo
movimento pendular entre a sua função de fazer cumprir a lei e, a sua
capacidade para a sua suspensão arbitrária; uma figura cujo espetáculo cinético
é de chamar para si o monopólio sobre a determinação do que, no urbano,
constitui um espaço de circulação, tarefa que executa não apenas quando orienta
o trânsito, mas também quando executa com alarde a sua performance de
transgressão de sentidos de circulação na cidade, com carros velozes cheios de
luzes e sirenes alardeando assim a sua excepcional ultramobilidade, uma vez que
para a polícia nunca existe a contramão”. (LEPECKI, 2012)
A
arte, muitas vezes, está no lugar justamente de quebrar algumas normas, ou ao
menos fazer com que o espectador seja de fato emancipado de sua ignorância
alienada, como também defendia Bertolt Brecht, o que penso não se resolver
apenas “interagindo” com a obra, mas construindo um pensamento político
reflexivo que não combina com o autopoliciamento constante. Infelizmente, o
público da Galeria Olido estava coreopoliciado demais, cumprindo suas normas e
pouco consciente de seu potencial transgressor, ainda que provocado pelo
artista.