Por Igor Gasparini
Se
Nelson Rodrigues me permite parafrasear o nome de sua obra Toda nudez será castigada (1965),
na dança de hoje, parece que toda nudez tem sido é desculpada, absolvida e,
mais que isso, cada vez mais recorrente em obras contemporâneas. Em pouco mais
de uma semana, assisti a três trabalhos de destaque no cenário da dança de São
Paulo em que a nudez esteve presente e o público parece estar aprendendo a
lidar com essas propostas. Longe de qualquer censura ou puritanismo, a ideia aqui
é refletir um pouco sobre o corpo nu em cena e de que maneira o público tem se
relacionado com ele.
Esse encontro com a obra de arte contemporânea, justamente por não ser um encontro “fácil”, precisa ser repetido, criando o hábito. O ritmo, geralmente mais lento, mais esgarçado, aquilo que se leva à cena, para quem e onde se apresenta, tudo tem mudado e a nudez é apenas mais um elemento ao qual é possível se habituar. A ideia não é a de esgotar essa relação, mas de destacar que a dança contemporânea, ao menos nos últimos 50 ou 60 anos, tem feito isso: há uma constante “artificação” (Arthur Danto) do gesto, do corpo que não é treinado, de uma dança que nem sempre gera movimento, do corpo sem aquela beleza estética esperada...
Esse encontro com a obra de arte contemporânea, justamente por não ser um encontro “fácil”, precisa ser repetido, criando o hábito. O ritmo, geralmente mais lento, mais esgarçado, aquilo que se leva à cena, para quem e onde se apresenta, tudo tem mudado e a nudez é apenas mais um elemento ao qual é possível se habituar. A ideia não é a de esgotar essa relação, mas de destacar que a dança contemporânea, ao menos nos últimos 50 ou 60 anos, tem feito isso: há uma constante “artificação” (Arthur Danto) do gesto, do corpo que não é treinado, de uma dança que nem sempre gera movimento, do corpo sem aquela beleza estética esperada...
De
5 a 7 de setembro, Ismael Ivo estreou no SESC Vila Mariana Das tripas Coração, espetáculo fruto do projeto Biblioteca
do Corpo, em que o coreógrafo, em parceria com a Poiesis, uma Organização Social por parte do Governo do Estado de São Paulo, junto ao SESC-SP, leva 10
bailarinos brasileiros para Viena para participarem de uma imersão artística
com coreógrafos internacionais no Festival ImPulsTanz, em que Ivo é diretor
artístico.
De 17 a 27 deste mesmo mês, também com organização do SESC-SP, ocorreu a Bienal SESC de Dança que, pela primeira vez, teve a unidade de Campinas como sede. O trabalho Estado imediato, de Ana Catarina Vieira e Ângelo Madureira, foi o escolhido para realizar, em evento fechado, a abertura para a imprensa, enquanto Tragédie, do francês Olivier Dubois, foi convidado pela curadoria para realizar a abertura da programação oficial, também apresentado em São Paulo, no SESC Pinheiros.
De 17 a 27 deste mesmo mês, também com organização do SESC-SP, ocorreu a Bienal SESC de Dança que, pela primeira vez, teve a unidade de Campinas como sede. O trabalho Estado imediato, de Ana Catarina Vieira e Ângelo Madureira, foi o escolhido para realizar, em evento fechado, a abertura para a imprensa, enquanto Tragédie, do francês Olivier Dubois, foi convidado pela curadoria para realizar a abertura da programação oficial, também apresentado em São Paulo, no SESC Pinheiros.
Nos
três trabalhos citados, o público se depara com o corpo nu dos bailarinos e
esta nudez em obras de dança não é novidade, mas parece resistir e, mais que
isso, tem sido recorrente nas diversas companhias brasileiras e internacionais.
Se por um lado, há vários clichês em que o nu aparece apenas como mais um
elemento contemporâneo entre tantos outros, assim como criticou o coreógrafo
Paulo Caldas sobre tabela brutal publicada pelo jornal O Globo em que colocava
o que era in e o que era out na dança contemporânea:
"música
ao vivo: in; música gravada: out; improvisação: in; composição: out; roupas
cotidianas: in; figurinos: out; cabelos curtos: in; cabelos cumpridos: out;
visto que nós sabemos que a inquietude pode estar com sapatilhas de pontas num
palco italiano, enquanto o clichê, descalço, pode estar travestido de
performance ou site specific na rua", Paulo Caldas em artigo publicado no
livro Temas para a dança brasileira, Edições SESC-SP, 2010.
Por
outro lado, como nestes três exemplos citados, há trabalhos em que justamente a
nudez se coloca como questão, ou faz parte da proposta cênica, aparecendo como
um elemento essencial da composição dramatúrgica.
Tragédie, de Olivier Dubois
Em
Tragédie, Dubois propõe ao espectador
uma experiência sensorial e enganou-se aquele que apenas assistiria a um espetáculo
confortavelmente sentado em sua poltrona. Por 40 minutos, os bailarinos somente andaram em linhas retas pelo palco. Completamente nus, iam e vinham
rigorosamente sincronizados, ora um, ora em pequenos grupos, ora todos juntos, se revezando
em entradas e saídas de cena. Entre as diversas variações na construção e distribuição espacial desses corpos, algo era constante: as pisadas sincronizadas às batidas
marcadas da música. E esse pulso foi dando o tom do trabalho, gerando sensações
múltiplas de êxtase à raiva, enquanto todos, hipnotizados, vivenciavam tal
experiência.
Após
algum tempo de exposição, a nudez passa a ser apenas um mero detalhe, pois
acabamos por nos habituar àqueles corpos nus que andam constantemente. Penso
que esta seja uma das contribuições destes trabalhos, pois, aos poucos,
fazem o público se acostumar com a nudez, sem preconceitos, sem censuras, sem
puritanismo.
Novas
possibilidades corporais vão sendo adicionadas aos deslocamentos, até que os
movimentos se ampliam, além de sequências e novas propostas de transições que são realizadas.
A música cresce, a iluminação diversifica, pisca e atormenta. E os corpos
vigorosos continuam a dançar, pular, mexer, e a se movimentar incansavelmente.
A condição humana levada ao êxtase máximo pela repetição, em tensão crescente compartilhada
entre bailarinos e público por uma hora e meia. Muito mais que um trabalho coreográfico,
os impulsos desencadeados por Tragédie
torna a experiência indescritível.
Das tripas coração, de Ismael Ivo
Já em Das
tripas coração, Ivo faz o público rever o seu lugar de conforto, de quem apenas
observa impunemente a uma obra de arte, ao propor que as pessoas entrassem no
teatro pelo palco. O espectador andava por entre as mesas e via, de muito
perto, os corpos dos bailarinos expostos como em um laboratório de anatomia.
Nesta galeria de arte, ou "jardim do corpo", como definiu o coreógrafo, Ivo trouxe
à tona a reflexão sobre o tráfico de órgãos. Ao som de um pulso constante com
clima hospitalar, alguns dados foram apresentados projetados no ciclorama, afirmando que o Brasil é um dos países com maior
número de casos de tráfico de órgãos, o que fez Ivo trabalhar esse tema, visto o
constante silenciamento da mídia sobre o assunto.
Notavelmente,
aqui há mais um exemplo de experiência em que o público vivencia algo distante
daquele lugar acomodado em que está acostumado. Ainda assim, em Das tripas coração, após a visita ao “jardim
do corpo”, todos puderam se acomodar para então apreciar o processo artístico
desenvolvido com os dez bailarinos brasileiros que se juntaram à quatro
chinesas e à duas italianas convidadas. O corpo, este que pode ter seus órgãos roubados
a qualquer momento e ser encontrado largado em uma praia qualquer, é
vigorosamente requisitado em sequências diversas que variam da técnica à
sensação, construindo uma poética bastante densa e que encerra brilhantemente
ao som de Jesus blood never felt me yet,
interpretada em loop por Tom Waits junto a um mendigo norte-americano.
Estado Imediato, de Ana Catarina Vieira e Ângelo Madureira
Por
fim, a partir de um questionamento sobre a condição física e psicológica do
artista da dança, Ana Catarina Vieira e Ângelo Madureira já iniciam seu
trabalho, junto a outros quatro bailarinos, arriando suas calças e, de costas
para o público, interpretam com suas nádegas as diversas batidas marcantes dos
tambores da trilha sonora. E isso, por si só, já é bastante significativo, visto que a tal brasilidade é muitas vezes associada à bunda e ao Carnaval. Em alguns
outros momentos da obra, os bailarinos aparecem nus novamente com o intuito de
questionar também o quanto esse corpo, treinado e codificado, é adestrado por
quem trabalha profissionalmente com a dança, ainda que carregado de memória, de
história e de tradição.
E por falar em tradição, a dupla de coreógrafos tem como marca de sua trajetória a resignificação do ballet clássico e das danças populares brasileiras, com destaque para o frevo. Eles buscam transformar em dança contemporânea um corpo marcado por diferentes raízes culturais. O pequeno guarda-chuva, negro, ou o tutu da bailarina e sua sapatilha de ponta, são apenas elementos cênicos que contribuem para a desconstrução proposta por Estado imediato.
A partir dessas e outras obras, é possível notar que tudo aquilo que está no cotidiano, tem se transformado em arte, proporcionando outra relação com o que se apresenta. E com isso, o público se vê diante de uma proposição diferente, sendo requisitada uma participação distinta daquela que está acostumado. Na medida em que a dança contemporânea vem “artificando” o corpo que anteriormente não subia ao palco, transformando assuntos e temas do cotidiano em obas, abrindo espaços para locais que antes não eram da dança e ainda, muitas vezes, apresentando processos e não espetáculos como, em teoria, o público espera, algumas questões se apresentam:
Quem assiste a dança contemporânea hoje? Quem sabe onde está ou sabe o que é? Onde circula essa informação? Talvez seja apenas entre seus próprios pares, que buscam as informações sobre aquilo a que fazem parte. Entretanto, há artistas cada vez mais conscientes do papel que possuem neste ambiente, como nos exemplos citados, proporcionando as mais variadas experiências ao público e que, talvez, possam estar se habituando a essa tal dança contemporânea. Neste caso, a essa dança desnuda.
E por falar em tradição, a dupla de coreógrafos tem como marca de sua trajetória a resignificação do ballet clássico e das danças populares brasileiras, com destaque para o frevo. Eles buscam transformar em dança contemporânea um corpo marcado por diferentes raízes culturais. O pequeno guarda-chuva, negro, ou o tutu da bailarina e sua sapatilha de ponta, são apenas elementos cênicos que contribuem para a desconstrução proposta por Estado imediato.
A partir dessas e outras obras, é possível notar que tudo aquilo que está no cotidiano, tem se transformado em arte, proporcionando outra relação com o que se apresenta. E com isso, o público se vê diante de uma proposição diferente, sendo requisitada uma participação distinta daquela que está acostumado. Na medida em que a dança contemporânea vem “artificando” o corpo que anteriormente não subia ao palco, transformando assuntos e temas do cotidiano em obas, abrindo espaços para locais que antes não eram da dança e ainda, muitas vezes, apresentando processos e não espetáculos como, em teoria, o público espera, algumas questões se apresentam:
Quem assiste a dança contemporânea hoje? Quem sabe onde está ou sabe o que é? Onde circula essa informação? Talvez seja apenas entre seus próprios pares, que buscam as informações sobre aquilo a que fazem parte. Entretanto, há artistas cada vez mais conscientes do papel que possuem neste ambiente, como nos exemplos citados, proporcionando as mais variadas experiências ao público e que, talvez, possam estar se habituando a essa tal dança contemporânea. Neste caso, a essa dança desnuda.
Caro ìgor,
ResponderExcluirExcelentes reflexões sobre o nu coreográfico. Recentemente, no Rio, tinha feito também um comentário crítico sobre Tragédie. Se puder dar uma conferida, seria perfeito ( www.escriturascenicas.com.br )
Como tive vontade de ver os outros espetáculos da mostra. Pena que não virão ao Rio, certamente.
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wagner.correa@terra.com.br