quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

O espectador emancipado


Por Igor Gasparini

Neste segundo texto sobre o papel do espectador, a abordagem advém do texto O espectador emancipado, do filósofo Jacques Rancière. Tal artigo é fruto do capítulo O espectador como questão da monografia de pós-graduação em jornalismo cultural “A comunicação entre dança e público: O papel do coreógrafo e do jornalismo cultural na construção da relação obra-espectador”, que teve orientação da Profa. Dra. Helena Katz e foi defendida na PUC-SP.


(Intervenção Deserto de Ilusões - SESC Santana - T.F.Style Cia de Dança)


Jacques Rancière, na obra O Espectador Emancipado (2010), afirma que não existe teatro sem espectadores, mesmo que seja apenas um, único e escondido. Ele defende que
                       
“a condição do espectador é uma coisa ruim. Ser um espectador significa olhar para um espetáculo. E olhar é uma coisa ruim, por duas razões. Primeiro, olhar é considerado o oposto de conhecer. Olhar significa estar diante de uma aparência sem conhecer as condições que produziram aquela aparência ou a realidade que está por trás dela. Segundo, olhar é considerado o oposto de agir. Aquele que olha para o espetáculo permanece imóvel na sua cadeira, desprovido de qualquer poder de intervenção. Ser um espectador significa ser passivo. O espectador está separado da capacidade de conhecer, assim como ele está separado da possibilidade de agir”. (RANCÈRE, 2010).

            Se o espectador está separado da capacidade de conhecer e agir porque apenas “olha” passivamente, existe uma outra possibilidade para lidar com o que assiste? Para Rancière, existe sim, e se trata de tornar-se um espectador emancipado.

            O autor defende que existe a necessidade de um novo teatro, sem a “condição de espectador”; pois esse espectador emancipado estaria subordinado a outra relação, implícita no termo drama, que significa, por sua vez, ação. Esses indivíduos irão “aprender coisas em vez de ser capturados por imagens, onde vão se tornar participantes ativos numa ação coletiva em vez de continuarem como observadores passivos” (RANCÈRE, 2010). Dessa forma, ele ainda defende que o espectador deve ser liberado da passividade de observador que fica fascinado pela aparência à sua frente e se identifica com as personagens no palco, para ser confrontado com o espetáculo que cause estranhamento; para lidar com um enigma e com a demanda de investigar esse estranhamento. Por fim, esse espectador emancipado será impelido a abandonar seu antigo papel para assumir o de cientista que observa fenômenos e procura suas causas.


(Espetáculo Deserto de Ilusões - T.F.Style Cia de Dança)


O artista deve, então, se questionar: a quem se destina este espetáculo? O que desejo com ele? Qual é a minha intenção? Novamente, é importante ressaltar que tal intenção não necessariamente será lida pelo espectador, mas caminhos serão apresentados a fim de sugerir possibilidades de leitura, questionamento e reflexão.

Diferentes fatores favorecem a identificação do público e, segundo Edgar Morin, é necessário que

“as personagens vivam com mais intensidade, mais amor, mais riqueza afetiva do que o comum dos mortais. É preciso, também, que as situações imaginárias correspondam a interesses profundos, que os problemas tratados digam respeito intimamente a necessidades e aspirações dos leitores ou espectadores” (MORIN, 1977, p. 86).

         Não defendo que a comunicação deva ser tratada como uma responsabilidade unidirecional, do artista para o público. No fazer artístico, o que o espetáculo propõe não pode mesmo ser interpretado de “forma correta” pelos espectadores, mas, assim como ocorre na comunicação verbal, pode abrir possibilidades de interpretação, suscitar diferentes opiniões e reflexões. Cada um que compõe o que se chama de “público de dança” irá interpretar o espetáculo de acordo com a sua percepção, que pode não coincidir com o caminho sugerido pelo autor da obra. Como diz Rancière,

“os espectadores vêem, sentem e entendem algo na medida em que fazem os seus poemas como o poeta o fez, como os atores, dançarinos ou performers o fizeram. O dramaturgo gostaria que eles vissem esta coisa, sentissem este sentimento, entendessem esta lição a partir do que eles vêem, e que partam para esta ação em consequência do que viram, sentiram ou entenderam” (RANCIÈRE, 20102).

Ainda no mesmo livro, o autor defende que há uma distância entre ator e o espectador. Mas há também a distância inerente à própria performance, visto que ela é um "espetáculo" mediático, que se encontra entre a ideia do artista e a leitura do espectador. O espetáculo é um terceiro termo, a que os outros dois podem se referir, mas que impede qualquer forma de transmissão "igual" ou "não-distorcida". Independentemente dessa distância, a comunicação entre espectador e obra se faz presente.

Por fim, Rancière ainda defende a ideia de que o teatro deva ser sinônimo para “comunidade de corpo vivo”, em oposição à ilusão da mimesis, o que significa ter múltiplos agentes no fazer teatral, incluindo o espectador emancipado, participativo e atuante na obra. Dessa forma, critica o “espetáculo” pela sua externalidade, essência da teoria de Guy Debord, pois o espetáculo estaria totalmente relacionado à visão e esta, significa externalidade. “Quanto mais um homem contempla, menos ele é” (DEBORD apud RANCIÈRE, 2010).


(Espetáculo Deserto de Ilusões - T.F.Style Cia de Dança)



Referências:

MORIN, E. Cultura de Massas no século XX - O espírito do tempo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1977.

RANCIÈRE, J. O espectador emancipado. [S.l.]: Olho Negro, 2010.



segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

O espectador como questão


Por Igor Gasparini

Segue o primeiro de dois textos que publicarei sobre o espectador. Ambos fazem parte do capítulo homônimo O espectador como questão da monografia de pós-graduação em jornalismo cultural “A comunicação entre dança e público: O papel do coreógrafo e do jornalismo cultural na construção da relação obra-espectador”, que teve orientação da Profa. Dra. Helena Katz e foi defendida na PUC-SP. Neste primeiro texto, autores que introduzem o papel do espectador para, no segundo momento, aprofundar a discussão com a leitura de O espectador emancipado, do filósofo Jacques Rancière.

(Espetáculo Encontros e Desencontros - T.F.Style Cia de Dança)


Para Gombrich (1909-2001), o papel do espectador é extremamente ativo, trata-se de uma construção visual pelo “reconhecimento” ou “rememoração”, na qual, opõe estas duas formas principais de investimento psicológico, em que a segunda é colocada como mais profunda e mais importante; para ele, o espectador faz a imagem, e acrescento, faz a obra acontecer. O olhar fortuito é, então, um mito. Mais que isso, o público percebe o espetáculo podendo transcender o que é encenado no palco. “A identificação do observador com o artista deve encontrar sua contrapartida na identificação do artista com o observador” (GOMBRICH, 2007, p. 196). Para ele, é o espectador o responsável pela obra. Ou como defende Charles Baudelaire, “que o artista aja sobre o público, e que o público reaja sobre o artista, é uma lei incontestável e irresistível” (BAUDELAIRE apud ENTLER, 2007, p. 4).

Gombrich ainda reforça o poder da interpretação. O observador não passa ileso após entrar em contato com uma obra de arte; naturalmente, a mesma o convida a realizar uma leitura; e o espectador tem, assim “a capacidade de colaborar com o artista e transformar um pedaço de tela pintada numa semelhança com o mundo visível” (GOMBRICH, 2007, p. 246). Penso que o mesmo ocorre na dança: o artista faz uma primeira interpretação do mundo e o seu público dará continuidade a esse esquema de interpretações subjacentes.

Jacques Aumont, em sua obra O olho interminável – cinema e pintura, reflete sobre o tempo do espectador. De que forma ocorrerá essas interpretações subjacentes e como organizá-las em distintas manifestações artísticas, sejam elas dinâmicas, como o teatro e a dança, ou estáticas, como a pintura e a escultura? Aumont questiona “como é que o tempo é entregue ao espectador? O que é o tempo de um quadro para seu espectador? (...) Como o espectador se comporta diante desse quadro?” (AUMONT, 2004, p. 83). O autor levanta tais questionamentos para refletir sobre a diferença do tempo de contemplação da pintura quando comparado ao tempo do cinema.

A mesma diferença de tempo de contemplação ocorre também na dança, visto que nos trabalhos estáticos, como a pintura ou a escultura, há espaço para o observador refletir sobre a obra de acordo com a sua disposição daquele momento; enquanto que na representação teatral, no cinema ou na dança existe uma fruição constante de acontecimentos em cadeia. Em ambos, porém, a reflexão perdura não só durante o olhar de uma obra estática ou pela apresentação do espetáculo, mas também posteriormente a eles. Para Laban,

“a plateia de um teatro, de uma mímica ou de um balé não tem oportunidade para contemplação. A mente do espectador vê-se inexoravelmente subjugada pela fluência de acontecimentos que mudam a todo instante os quais, dada uma verdadeira participação interna de sua parte, não deixam tempo disponível para a cogitação e meditação elaboradas, ambas naturais e possíveis quando se aprecia, por exemplo, um quadro ou alguma cena de beleza natural” (LABAN, 1978, p. 31)

O filósofo Roger Garaudy vê a dança como forma de expressão, “através de movimentos do corpo organizados em sequências significativas, de experiências que transcendem o poder das palavras e da mímica” (GARAUDY, 1994, p. 13). Para ele, o gesto do dançarino é projetivo e não é como a mímica, pois induz a experiência não conceitualizável, não redutível à palavra.

“Se pudéssemos dizer uma certa coisa, não precisaríamos dançá-la. Entre a mímica e a dança, existe a mesma diferença que entre o conceito, que resume o que já existe e o mito, que excede o que existe para sugerir um possível. A dança não conta uma história. Ela não é uma duplicação da literatura, nem aquele jogo infantil em que a mímica permite adivinhar a palavra escolhida. Como o mito, a dança é um indicador de transcendência” (GARAUDY, 1994, p. 22)

(Espetáculo Encontros e Desencontros - T.F.Style Cia de Dança)


Na mesma linha de pensamento do corpo comunicativo, o filósofo Merleau-Ponty apresenta o potencial expressivo que há no corpo por meio dos gestos. Defende que há um universo perceptível, interpretativo e individual, a partir de tudo o que há no mundo, universo sensível, o que é captado pelos órgãos do sentido. Assim, artistas e público estão constantemente captando sensações e transformando-as em percepção, o que leva a uma interpretação reflexiva e, consequentemente, firmando a comunicação existente entre eles. O público sente os diversos elementos de um espetáculo, percebe parte deles, interpretando-os, enquanto que os artistas recebem de volta as percepções do público em uma comunicação mútua. É possível, muitas vezes, perceber se o público está atento ou disperso, a intensidade dos aplausos, entre outros elementos que chegam naturalmente àqueles que estão no palco.

“Lembremos a magia do teatro ou da dança – essa estrutura em movimento -, em que a linguagem gestual faz com que o corpo do ator ou do bailarino deixe de ser coisa, para ampliar sua capacidade expressiva e comunicativa.” (CARMO, 2002, p. 87)

Ao pensar na relação espetáculo-público, devemos evitar o conceito de público no sentido de um agente coletivo inespecífico, uma massa “inexpressiva” diante de um espetáculo, e, talvez, optar pelo conceito de espectador que considera o indivíduo como ser único e singular, com suas vivências e experiências também únicas e singulares.

            Para a artista plástica Isis Ferreira Gasparini, por razões acima de tudo poéticas, o termo mais instigante na relação com a obra de arte é espectador.

“Usado na maioria das vezes para definir um sujeito particular relacionado às artes, surge também para definir aquele que assiste a um espetáculo de qualquer natureza. A origem latina de espectador, spectator, remete a outras derivações como spectabilis, que é o visível; e spectaculum, a festa pública que se oferece ao spectator, aquele que vê, o espectador. Essa visão pode alcançar ainda algo que está fora do campo das aparências óbvias: o spectrum, que é a aparição de algo invisível, às vezes, literalmente um fantasma. O verbo spectare (ver, observar) também está ainda na raiz de outro, expectare: um ver que manifesta uma vontade, um desejo, uma busca. Um “expectador” seria então alguém que, além de observar, projeta expectativas sobre aquilo que está vendo. Mesmo que essas palavras sejam distintas, tal derivação sugere uma concepção de visão que se abre a uma possibilidade de interação com o que é visto, deixando de ser, portanto, apenas um ato passivo” (GASPARINI, 2011, p. 55).

Ela ainda defende que o espectador relaciona o que está diante de si, somando representações subjetivas aos estímulos externos. “A experiência de cada espectador é um tipo de recriação da obra do artista. A obra de arte é, portanto, a somatória do ponto de vista do artista com aquele construído pelo espectador" (GASPARINI, 2011, p. 57).

E são várias as possibilidades de interação com a obra, mesmo que não haja uma proposta de diálogo entre público e artista, esse espectador estará realizando outras formas de diálogo, seja com suas próprias experiências, seja refletindo, seja conversando com outras pessoas.

(Espetáculo Encontros e Desencontros - T.F.Style Cia de Dança)


Referências:

AUMONT, J. O olho interminável – cinema e pintura. 1.ed. São Paulo: Cosac Naif, 2004.

CARMO, P. S. D. Merleau-Ponty Uma introdução. [S.l.]: Editora EDUC, 2002.

ENTLER, R. O público moderno e a fotografia. Trad.: Carta ao Sr. Diretor da Reveue française sobre o Salão de 1859, de Charles Baudelaire. Revista FACOM n.17. São Paulo: Faculdade de Comunicação da FAAP, 2007.

GARAUDY, R. Dançar a vida. 6. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994.

GASPARINI, I. Olhar outro. 102F. Trabalho de Graduação Interdisciplinar – Fundação Armando Álvares Penteado. São Paulo: FAAP, 2011.

GOMBRICH, E. H. Arte e Ilusão: Um estudo da psicologia da representação pictórica. 4a. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007.

LABAN, R. V. Domínio do Movimento. 5. ed. Organizada por Lisa Ullmann. São Paulo: Summus, 1978.