quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Toda nudez será coreografada


Por Igor Gasparini


Se Nelson Rodrigues me permite parafrasear o nome de sua obra Toda nudez será castigada (1965), na dança de hoje, parece que toda nudez tem sido é desculpada, absolvida e, mais que isso, cada vez mais recorrente em obras contemporâneas. Em pouco mais de uma semana, assisti a três trabalhos de destaque no cenário da dança de São Paulo em que a nudez esteve presente e o público parece estar aprendendo a lidar com essas propostas. Longe de qualquer censura ou puritanismo, a ideia aqui é refletir um pouco sobre o corpo nu em cena e de que maneira o público tem se relacionado com ele.

Esse encontro com a obra de arte contemporânea, justamente por não ser um encontro “fácil”, precisa ser repetido, criando o hábito. O ritmo, geralmente mais lento, mais esgarçado, aquilo que se leva à cena, para quem e onde se apresenta, tudo tem mudado e a nudez é apenas mais um elemento ao qual é possível se habituar. A ideia não é a de esgotar essa relação, mas de destacar que a dança contemporânea, ao menos nos últimos 50 ou 60 anos, tem feito isso: há uma constante “artificação” (Arthur Danto) do gesto, do corpo que não é treinado, de uma dança que nem sempre gera movimento, do corpo sem aquela beleza estética esperada...


De 5 a 7 de setembro, Ismael Ivo estreou no SESC Vila Mariana Das tripas Coração, espetáculo fruto do projeto Biblioteca do Corpo, em que o coreógrafo, em parceria com a Poiesis, uma Organização Social por parte do Governo do Estado de São Paulo, junto ao SESC-SP, leva 10 bailarinos brasileiros para Viena para participarem de uma imersão artística com coreógrafos internacionais no Festival ImPulsTanz, em que Ivo é diretor artístico.

De 17 a 27 deste mesmo mês, também com organização do SESC-SP, ocorreu a Bienal SESC de Dança que, pela primeira vez, teve a unidade de Campinas como sede. O trabalho Estado imediato, de Ana Catarina Vieira e Ângelo Madureira, foi o escolhido para realizar, em evento fechado, a abertura para a imprensa, enquanto Tragédie, do francês Olivier Dubois, foi convidado pela curadoria para realizar a abertura da programação oficial, também apresentado em São Paulo, no SESC Pinheiros. 

Nos três trabalhos citados, o público se depara com o corpo nu dos bailarinos e esta nudez em obras de dança não é novidade, mas parece resistir e, mais que isso, tem sido recorrente nas diversas companhias brasileiras e internacionais. Se por um lado, há vários clichês em que o nu aparece apenas como mais um elemento contemporâneo entre tantos outros, assim como criticou o coreógrafo Paulo Caldas sobre tabela brutal publicada pelo jornal O Globo em que colocava o que era in e o que era out na dança contemporânea:

"música ao vivo: in; música gravada: out; improvisação: in; composição: out; roupas cotidianas: in; figurinos: out; cabelos curtos: in; cabelos cumpridos: out; visto que nós sabemos que a inquietude pode estar com sapatilhas de pontas num palco italiano, enquanto o clichê, descalço, pode estar travestido de performance ou site specific na rua", Paulo Caldas em artigo publicado no livro Temas para a dança brasileira, Edições SESC-SP, 2010.

Por outro lado, como nestes três exemplos citados, há trabalhos em que justamente a nudez se coloca como questão, ou faz parte da proposta cênica, aparecendo como um elemento essencial da composição dramatúrgica.

Tragédie, de Olivier Dubois

Em Tragédie, Dubois propõe ao espectador uma experiência sensorial e enganou-se aquele que apenas assistiria a um espetáculo confortavelmente sentado em sua poltrona. Por 40 minutos, os bailarinos somente andaram em linhas retas pelo palco. Completamente nus, iam e vinham rigorosamente sincronizados, ora um, ora em pequenos grupos, ora todos juntos, se revezando em entradas e saídas de cena. Entre as diversas variações na construção e distribuição espacial desses corpos, algo era constante: as pisadas sincronizadas às batidas marcadas da música. E esse pulso foi dando o tom do trabalho, gerando sensações múltiplas de êxtase à raiva, enquanto todos, hipnotizados, vivenciavam tal experiência.

Após algum tempo de exposição, a nudez passa a ser apenas um mero detalhe, pois acabamos por nos habituar àqueles corpos nus que andam constantemente. Penso que esta seja uma das contribuições destes trabalhos, pois, aos poucos, fazem o público se acostumar com a nudez, sem preconceitos, sem censuras, sem puritanismo.

Novas possibilidades corporais vão sendo adicionadas aos deslocamentos, até que os movimentos se ampliam, além de sequências e novas propostas de transições que são realizadas. A música cresce, a iluminação diversifica, pisca e atormenta. E os corpos vigorosos continuam a dançar, pular, mexer, e a se movimentar incansavelmente. A condição humana levada ao êxtase máximo pela repetição, em tensão crescente compartilhada entre bailarinos e público por uma hora e meia. Muito mais que um trabalho coreográfico, os impulsos desencadeados por Tragédie torna a experiência indescritível.

Das tripas coração, de Ismael Ivo


Já em Das tripas coração, Ivo faz o público rever o seu lugar de conforto, de quem apenas observa impunemente a uma obra de arte, ao propor que as pessoas entrassem no teatro pelo palco. O espectador andava por entre as mesas e via, de muito perto, os corpos dos bailarinos expostos como em um laboratório de anatomia. Nesta galeria de arte, ou "jardim do corpo", como definiu o coreógrafo, Ivo trouxe à tona a reflexão sobre o tráfico de órgãos. Ao som de um pulso constante com clima hospitalar, alguns dados foram apresentados projetados no ciclorama, afirmando que o Brasil é um dos países com maior número de casos de tráfico de órgãos, o que fez Ivo trabalhar esse tema, visto o constante silenciamento da mídia sobre o assunto.

Notavelmente, aqui há mais um exemplo de experiência em que o público vivencia algo distante daquele lugar acomodado em que está acostumado. Ainda assim, em Das tripas coração, após a visita ao “jardim do corpo”, todos puderam se acomodar para então apreciar o processo artístico desenvolvido com os dez bailarinos brasileiros que se juntaram à quatro chinesas e à duas italianas convidadas. O corpo, este que pode ter seus órgãos roubados a qualquer momento e ser encontrado largado em uma praia qualquer, é vigorosamente requisitado em sequências diversas que variam da técnica à sensação, construindo uma poética bastante densa e que encerra brilhantemente ao som de Jesus blood never felt me yet, interpretada em loop por Tom Waits junto a um mendigo norte-americano.

Estado Imediato, de Ana Catarina Vieira e Ângelo Madureira


Por fim, a partir de um questionamento sobre a condição física e psicológica do artista da dança, Ana Catarina Vieira e Ângelo Madureira já iniciam seu trabalho, junto a outros quatro bailarinos, arriando suas calças e, de costas para o público, interpretam com suas nádegas as diversas batidas marcantes dos tambores da trilha sonora. E isso, por si só, já é bastante significativo, visto que a tal brasilidade é muitas vezes associada à bunda e ao Carnaval. Em alguns outros momentos da obra, os bailarinos aparecem nus novamente com o intuito de questionar também o quanto esse corpo, treinado e codificado, é adestrado por quem trabalha profissionalmente com a dança, ainda que carregado de memória, de história e de tradição.

E por falar em tradição, a dupla de coreógrafos tem como marca de sua trajetória a resignificação do ballet clássico e das danças populares brasileiras, com destaque para o frevo. Eles buscam transformar em dança contemporânea um corpo marcado por diferentes raízes culturais. O pequeno guarda-chuva, negro, ou o tutu da bailarina e sua sapatilha de ponta, são apenas elementos cênicos que contribuem para a desconstrução proposta por Estado imediato.

A partir dessas e outras obras, é possível notar que tudo aquilo que está no cotidiano, tem se transformado em arte, proporcionando outra relação com o que se apresenta. E com isso, o público se vê diante de uma proposição diferente, sendo requisitada uma participação distinta daquela que está acostumado. Na medida em que a dança contemporânea vem “artificando” o corpo que anteriormente não subia ao palco, transformando assuntos e temas do cotidiano em obas, abrindo espaços para locais que antes não eram da dança e ainda, muitas vezes, apresentando processos e não espetáculos como, em teoria, o público espera, algumas questões se apresentam:

Quem assiste a dança contemporânea hoje? Quem sabe onde está ou sabe o que é? Onde circula essa informação? Talvez seja apenas entre seus próprios pares, que buscam as informações sobre aquilo a que fazem parte. Entretanto, há artistas cada vez mais conscientes do papel que possuem neste ambiente, como nos exemplos citados, proporcionando as mais variadas experiências ao público e que, talvez, possam estar se habituando a essa tal dança contemporânea. Neste caso, a essa dança desnuda.