Por Igor Gasparini
Há quem diga que arte contemporânea
pode ser tudo; ou que, por ser “qualquer coisa”, não é nada. Obviamente, esse é
um olhar raso com relação à produção artística contemporânea que, na maioria
dos casos, traz um contexto crítico atrelado às suas obras. Na dança não é
diferente. Em um mundo no qual o que chega às pessoas é a dança dos famosos, torna-se complicado o entendimento de qual seria
o “papel” do público de dança. Aquela plateia que assiste passivamente a um
espetáculo de dança esperando que seja contada uma história - assim como na
novela das 9 - sai frustrada do teatro. O olhar para a dança contemporânea vai
muito além disso, pois perpassa por uma posição ativa, crítica e reflexiva
sobre o objeto apresentado. Para Denise da Costa Oliveira Siqueira, professora
e pesquisadora da Faculdade de Comunicação Social da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, em seu livro Corpo,
comunicação e cultura – a dança contemporânea em cena,
“além de expressão da sociedade e da
cultura, a dança cênica é arte, portanto, simbólica, e porta significações que
transcendem o valor estético espetacular. Movimentos construídos
coreograficamente e repetidos em cena contam histórias, revelam problemas ancestrais
ou contemporâneos. São uma forma de expressão e comunicação complexa, pois
envolvem valores e preconceitos, refletem o contexto histórico, econômico,
cultural e educativo e podem suscitar discussão. Assim, o espetáculo de dança
pode ser compreendido como parte de um sistema cultural e social maior, com o
qual troca informações, modificando-se, transformando-se.” (SIQUEIRA, 2006, p.
5).
(Espetáculo Tempo - T.F.Style Cia de Dança)
Para Kathya Maria Ayres de Godoy, professora
e pesquisadora da Unesp, bailarina desde a infância, a dança contemporânea não
é livre, não pode ser tudo, uma vez que sendo arte, possui uma linguagem
estruturada e codificada.
“A questão é que sendo uma dança da
contemporaneidade, está em um período em que ainda há descobertas de formas de
fazer dança e isso pode ser livre, mas essa liberdade deve ser consciente no
sentido de que a dança não pode deixar de comunicar por meio de movimentos
corporais” (GODOY, 2008, p. 4 – em entrevista realizada por Igor Gasparini para o Jornal da Dança – RJ – Edição 110 –
Junho de 2008).
Segundo a pesquisadora, a dança
contemporânea está em constante descoberta com o objetivo de agregar
linguagens, está em aberto, e se trata de uma comunicação viva e em
transformação.
Milton Coatti, bailarino do Balé da Cidade de São Paulo,
possui opinião convergente: “Se eu disser que tudo pode, estarei mentindo, mas
se eu disser que não, também”. Para ele, deve haver responsabilidade de quem
trabalha, além de bom senso coreográfico. Mesmo que para o criador certos
movimentos tenham sentido, esses devem ser contextualizados. “A microdança, as
pausas demasiadamente longas, as falas ou o nu, por exemplo, precisam estar
dentro desse contexto”, defende. Assim, é notável a defesa de que o trabalho no
palco deve fazer parte de um todo previamente estabelecido entre coreógrafo e bailarinos.
Entretanto, o quanto este contexto pode ser percebido por cada uma das pessoas
que constitui o público é que se mostra intrigante.
Ainda para Coatti “a diferença emerge de como cada
profissional caracterizará o seu trabalho e, independentemente do espaço, é
preciso saber o que tirar de cada movimento, como será cada movimentação,
preocupando-se com o sentido e com a conversa entre as ideias”.
Henrique Rodovalho, coreógrafo da Quasar Cia de Dança, em
entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo,
opinou sobre a relação da dança com o seu público: "precisava sair um pouco dessa coisa
quase inatingível que está se tornando a dança, muito conceitual, e ir ao
encontro do público". Rodovalho justificou suas intenções com o mais
recente trabalho da companhia, “No
singular”, que estreou no ano de 2012.
Andréa Pivatto, diretora do grupo Divinadança defende:
“existe a verdade do criador, mas eu acredito que deva haver definições em
cena, o processo de criação pode ser rico, mas é o público que faz o artista”,
afirma ela. A singularidade da dança está na ação corporal. Para Andréa, é uma
arte visual, estética, mas principalmente atrelada ao movimento que, mesmo
sutil, deve acontecer. Segundo ela, a dança contemporânea pode ser entendida
pelo processo de construção da cena, não apenas nas finalizações, mas pela
ligação entre as ideias, o que trará densidade.
Definir e instituir signos na dança
não é tarefa fácil, porém cabe ao artista criador a tarefa de fazê-los
existir. Conversando com o que propõe
Rancière, Brecht, já defendia, em 1972, que o público precisava manter-se ativo
na recepção de um espetáculo e não apenas assisti-lo passivamente. Ele afirma
que, se quiser chegar à fruição artística, nunca basta querer consumir
confortavelmente e sem muito trabalho o resultado da produção artística; é
necessário assumir parte da própria produção, estar num certo grau produtivo,
‘permitir certo dispêndio de imaginação’, associar sua experiência pessoal à do
artista ou opor-se à ela.
A relação entre espectador e obra de arte também é descrita por
Mannoni, que define o local do espectador:
“o teatro é, a primeira vista, o
lugar da exterioridade onde se contempla impunemente uma cena, mantendo-se a si
mesmo à distância. É, segundo Hegel, o lugar da objetividade e também aquele do
confronto entre palco e plateia; logo, aparentemente, é um espaço exterior,
visível e objetivo. Mas o teatro é também o local no qual o espectador deve
projetar-se (catarse, identificação). A
partir de então, como que por osmose, o teatro se torna espaço interior, ‘a
extensão do ego com todas as suas possibilidades” (MANNONI apud PAVIS, 2007, p.
136).
Assim, tudo o que é levado à cena repercutirá de alguma forma
na interpretação do espectador - situação que deve ser levada em conta pelos
artistas nela envolvidos. “O efeito de uma performance artística sobre o
espectador, observa Brecht, não é independente do efeito do espectador sobre o
artista. No teatro, o público regula a representação” (BRECHT, 1976, p. 265).
Ainda para o autor, o olhar e o desejo dos espectadores dão
sentido à cena, pois lida por uma multiplicidade variável de enunciadores. O
prazer do espectador, face a essas instâncias da enunciação, é variado: ser
enganado pela ilusão, acreditar e não acreditar, regressar a uma situação
infantil onde o corpo imóvel experimenta, sem demasiados riscos, situações
perigosas, situações aterrorizantes ou valorizantes. O espectador está
consciente das convenções (quarta parede, personagem, concentração dos efeitos
e da dramaturgia). Ele poderia (em teoria) intervir no palco, pode aplaudir ou
vaiar, mas não é isso que geralmente ocorre.
“A mediação teatral torna a plateia
atenta à situação social em que o próprio teatro se encontra, dando a deixa
para a plateia agir consequentemente. Ou, de acordo com o esquema artaudiano,
faz com que eles abandonem a condição de espectador: eles não estão mais
sentados diante do espetáculo, estão cercados pela cena, arrastados pelo
círculo da ação, o que devolve a eles sua energia coletiva” (RANCIÈRE, 20122).
Por outra linha de pensamento, Michael Kirby, estudioso que
lecionou na Universidade de Nova York, afirma que, consciente ou
inconscientemente, existe comunicação entre obra e público, pois mesmo que não
haja a intenção real do artista em passar determinada mensagem, se o público a
interpreta de tal forma, a comunicação está presente. E ainda acrescenta que a
criação de uma performance não é, na maioria dos casos, um ato espontâneo, mas
sim, envolve ensaios; logo, não é aleatório. “Uma peça, ou qualquer obra de
arte, pode ter várias interpretações sem ter uma ‘correta’; ‘mensagens’
contraditórias podem ser igualmente corretas” (KIRBY, 201111).
(Espetáculo Tempo - T.F.Style Cia de Dança)
O coreógrafo Paulo Caldas, da Staccato Companhia de Dança, em
entrevista a Siqueira (2006), afirma que pensa no termo “expressão” ao
referir-se à relação com o público, já que “o libera para conteúdos mais fluidos,
mais claros, mais plurais”. A abertura a leituras diferentes, a possíveis
interpretações, a produção de significações diferentes, movem a relação com o
público e, segundo ele, essa relação da dramaturgia
“acaba se dando mais como um efeito
colateral do que como uma preocupação. Uma vez colocada essa questão na obra,
as consequências de visibilidade, de legibilidade, de expressão, de comunicação
são quase um efeito colateral. Isso não significa que o espetáculo não esteja
comunicando. Está. Independentemente da vontade do criador”. (SIQUEIRA, 2006,
p. 161).
Outra coreógrafa que defende semelhante opinião é Márcia
Milhazes que afirma se preocupar com o público com intenção de tocá-lo. Ela
afirma que “quer que ele (o público) possa ter a chance de entrar naquele
universo pelo qual passei, naquele processo árduo e precioso pelo qual passei.
A obra não está sendo feita para mim, não tem esse sentido egoísta” (SIQUEIRA,
2006, p. 187). Assim, Milhazes dedica seus espetáculos a essa plateia e quer
que seu público esteja junto com ela, dialogando, os instigando a cada momento,
algo bastante semelhante ao que venho defendendo desde o início da presente
monografia.
Deborah Colker concorda com tais pensamentos, explica que
realmente tem a intenção de comunicar, e apresenta sua opinião de maneira
bastante radical:
“É, não tenho pouca, tenho muita.
Tenho totalmente a intenção. [...] Existem pessoas por aí que acham que fazer
um espetáculo difícil para o público é mais inteligente, mais sofisticado. Será
que fazer um espetáculo que se comunique mais rápido, mais facilmente, não é
muito mais difícil, muito mais difícil? [...] Acho que um espetáculo acontece
quando a comunicação se estabelece. [...] Sou mais radical, acho que quem diz
que não tem a intenção de comunicar está sendo ingênuo ou, digamos assim,
ignorante” (SIQUEIRA, 2006, p. 204 e 205).
Referências:
KIRBY, M. Performance
Não-Semiótica. 11. Ed. Vol. 11. Sala Aberta – Artigo 3, 2011.
PAVIS, P. Dicionário de Teatro. 3. ed. Editora
Perspectiva: [s.n.], 2007.
RANCIÈRE, J. O espectador emancipado. [S.l.]: Olho
Negro, 2010.
SIQUEIRA, D. D. C. O. Corpo, Comunicação e Cultura: a
dança contemporânea em cena. Campinas: Autores Associados, 2006.