Por Igor Gasparini
A obra
"Quanto se dependem as partes", do Coletivo O12, estreou
na última sexta, dia 27 de maio, na pedreira desativada da cidade de
Votorantim, município em que o núcleo é residente e desenvolve projetos
artísticos no Parque do Matão. A estreia foi uma das ações da 4ª edição do
“Dança na Pedreira”, projeto contemplado pelo Proac da Secretaria de Estado da
Cultura e que teve mais uma vez o objetivo de democratizar o espaço público.
Há quase
10 anos, o coletivo busca refletir artisticamente sobre o desenvolvimento dos
sistemas vivos, partindo do ponto de vista evolutivo, e em busca de autonomia,
capacidade que os sistemas são capazes de desenvolver. Inspirados pelos
conceitos presentes na obra de Jorge Albuquerque Vieira, este último trabalho
traz à luz reflexões sobre a vida, explorando a co-dependência como condição de
autonomia em sistemas vivos.
O fluxo
contínuo de existência é interpretado pelos artistas por meio de uma
movimentação rasteira que permanece constantemente pelo chão. Durante toda a
obra, o elenco continua se deslocando pelo espaço em um jogo que versa pela
imprevisibilidade dos encontros. Ou porque não desencontros, ajustes,
dependência, conflitos, mudança de percurso, trombadas, acalento,
autonomia.
Como
peixes em constante movimento, com seus braços que muito se assemelham a
guelras, os artistas vão desviando dos limites do palco como animais que
contornam as bordas de um aquário. O assunto principal do trabalho: os sistemas
vivos e suas inter-relações está dado, mas longe de propor uma obra de fácil
leitura. Os encontros vão se estabelecendo e gerando novas camadas de relação,
mas se engana o espectador incauto que foi à espera de assistir a um espetáculo
de dança, ao menos daquela dança a que se está acostumado a ver. Ainda que não
haja sequências coreográficas delimitadas, o jogo de corpo proposto por si só já
se configura como dança, visto que apenas corpos treinados para trabalhar com
esta linguagem seriam capazes de desenvolver por 1 hora um fluxo de
deslocamento em nível baixo com tamanha propriedade.
A própria natureza
do local se mistura com a proposta da obra e a pedreira constrói uma imagem
bastante poderosa em que os animais-artistas estão inseridos. E vale ressaltar
a intenção do coletivo, desde 2011, em democratizar este espaço abandonado com
ações artísticas gratuitas a quem possa interessar. Ainda que a apropriação da
pedreira pelos munícipes não tenha se concretizado em outras ações como desejam,
o coletivo O12 continua sua busca por tornar visível tal espaço
público, na tentativa de transformá-lo de fato em um local de convivência e
compartilhamento de ações artísticas, pedagógicas e políticas.
Enquanto o
trabalho seguia seu curso, outras reflexões surgiam e muitas imagens eram
criadas: animais parasitas, plantas sanguessugas, seres em que sua existência
depende justamente de hospedeiros para se abrigar. E a partir disso, o quanto
dependemos uns dos outros para existirmos? Simbolicamente, o quanto nos alojamos
uns aos outros para alcançar objetivos individuais ou coletivos? O quanto
desviamos de situações, assim como peixes que contornam as bordas de um
aquário?
Tais
reflexões se tornaram possíveis a partir de uma obra que não lhe bombardeia com
excessos de temas, propostas, sequências coreografadas, movimentos e mais
movimentos. O simples esgotamento de um único assunto permite que cada
espectador pare por minutos, entre praticamente em um estado de transe
reflexivo, e contemple uma obra sobre a vida. Confesso que é necessário
paciência, visto que o corpo estranha a ausência de estímulos diversos
constantes. Imersos em uma realidade de excessos, consequência das tecnologias
e dos ambientes online que modificaram diversos hábitos cognitivos, qualquer
momento de pausa parece sinônimo de perda de tempo, gerando impaciência e
intolerância nas relações. Havia pessoas inquietas na arquibancada, mexiam-se
constantemente, se contorciam, um ou outro até desistiu de tal desafio e
colocou-se a dormir recostado em ombro amigo. Mas esta é justamente outra das potentes
contribuições desta obra: provocar no espectador um estado de
contemplação-reflexão tão escasso nos dias de hoje.
Lembrei-me
ainda das aulas que tive com o professor Jorge Albuquerque e no conceito de
permanência explicado por ele, refletindo que o tempo de existência é
identificado e interpretado apenas pela espécie humana. Os humanos são os
únicos na natureza a, por exemplo, realizar suicídio. Dada a complexidade da
psique, parte pode ser explicado pelas teorias psicanalíticas, mas, por outro
lado, é possível olhar pelo conceito de permanência. No tempo de duração do ser
e estar no mundo, somos os únicos que possuímos essa consciência do tempo; da
passagem do mesmo ao longo dos anos; mas mais do que isso, da sensação de
“perda de tempo”. Todas as coisas tendem a ser e, dessa forma, pensamos sempre
em como permanecer no mundo. Aos poucos, vamos tentando construir nossa
autonomia, nossa capacidade de desenvolver estratégias de permanência, e isso
perpassa por algo essencial nas sociedades, a convivência, logo, a
tolerância.
E neste bumerangue
de reflexões que me levavam para longe, mas me traziam de volta, o tempo
dilatado da obra foi preenchido lentamente por novas camadas de interação entre
os intérpretes, pela trilha que mudava pouco, mas crescia constantemente, pelas
alterações cênicas, pela água que começou a escorrer pelo palco, pelas
vibrações causadas pela trilha sonora. E aquela sensação de peixes no aquário voltou
à tona, muito embora em outro nível de associação, em uma escolha duplamente
acertada justamente por ser a água o elemento escolhido, visto que sem ela não
há vida.
À luz
então cresceu...
Aos olhos
do público inclusive...
Os
barulhos na trilha sonora se tornaram ainda mais fortes...
O chão
tremeu...
A plataforma
tomada por água vibrou...
E os
nossos peixes-artistas continuaram a nadar, constantemente, como se nada
afetasse sua simples ambição de permanecer em movimento, de permanecer vivo.
Reflexões livres de um jornalista-artista-professor-intérprete-pisciano que teve a oportunidade
de ter aulas com o professor Jorge Albuquerque e que contou com contribuições reflexivas
dos também artistas Mayara Rosa, Marcos Werneck e Bruna Sant'Anna.