Por Igor Gasparini
O
conceito de estesia corresponde à capacidade humana de interpretar sensações e relacionar-se
com o mundo pelas diversas percepções. Esta habilidade permite que as pessoas
se comuniquem não apenas verbalmente, mas em um fluxo inestancável de troca de
informações (TEORIA CORPOMÍDIA, KATZ e GREINER, 2001) sejam elas visuais ou
não. E foi pensando (ou sentindo) este conceito que terminei a última
sexta-feira, dia 27, após assistir a quatro trabalhos distintos no SESC
Pinheiros.
Em
espaço alternativo, Marta Soares e Cia apresentaram o trabalho Deslocamentos – experimento II,
contemplado pela 16ª edição do Programa de Fomento a Dança para a cidade de São
Paulo. Na sequência, o programa Brasileiros,
do Balé da Cidade de São Paulo, estreou, no palco do Teatro Paulo Autran, três
trabalhos de ex-bailarinos da Companhia, que hoje possuem suas pesquisas
consagradas em núcleos particulares do cenário da dança contemporânea. Foram
apresentados: ---Fio da meada, de
Gleidson Vigne; Árvore do esquecimento,
de Jorge Garcia; e Cenas A37, de Alex
Soares.
(Marta Soares e Cia - Deslocamentos: experimentos II)
Após
tentar digerir melhor cada um dos trabalhos, a grande reflexão que ficou foi:
para onde estaria indo a dança contemporânea? Com certeza, uma pergunta sem
resposta, mas que faz com que muitos caminhos sejam trilhados na busca por uma
pesquisa de linguagem que varia do extremo do conceitual e da ausência de sequências
coreográficas a outra ponta em que parece haver muita fisicalidade e técnica e
pouca reflexão.
A
arte contemporânea, independentemente da linguagem, suscita potentes reflexões
e, muitas vezes, é possível desmistificar preconceitos, tendo em vista que até
hoje há quem acredite que obra de arte se resuma apenas a quadros emoldurados
na parede. O fato é que o leque de possibilidades da arte contemporânea é
bastante grande, podendo abranger manifestações das mais variadas perspectivas,
inspirações e técnicas. E, neste enorme espectro, o que se caracteriza então
como arte contemporânea? Fatalmente aquilo que dialogue com o momento atual,
que saiba olhar para as contradições existentes no meio e ainda promova
reflexões críticas.
Quando
adentramos ao universo da dança contemporânea, então, é possível perceber ainda
mais complicações e, em geral, o público continua em busca do mesmo
entendimento com que lida com as formas de comunicação apoiadas na linguagem
verbal: dedica-se a desvendar o significado da sua mensagem. Entende que o seu
papel é o de conseguir identificar qual foi a intenção do artista criador e, na
maioria das vezes, não consegue formular uma legenda explicativa para o que
assiste. Esse é o traço que caracteriza, no caso da dança, a relação do público
leigo com os espetáculos que assiste, o que empobrece o potencial reflexivo que
a arte contemporânea propõe.
O trabalho Deslocamentos, de Marta Soares, é uma
obra de arte, a ser contemplada silenciosamente como nos corredores de um
museu. Não é para assistir, mas para desvendar. Serão poucos aqueles que
afirmarão ser dança, isso porque se trata mais de uma performance de pesquisa
em que o corpo conectado dos bailarinos constrói formas diversas conjuntamente
do que coreografias e sequências organizadas como comumente se espera ver em um
espetáculo de dança. O silencio da sala é constantemente interrompido por
barulhos diversos de avião a descargas e o público desavisado levantou-se e foi
embora, não se desafiando a aguardar o final da obra.
Concordo que
falta dinâmica, visto que o trabalho começa e termina na mesma toada, sem altos
e baixos. Entretanto, sendo essa a proposta, a de apresentar a pesquisa como
“partituras coreográficas em que diferentes corpos moldados por figurinos se
movem gerando figuras hibridas e sem classificação pré-estabelecida”, o
trabalho é apresentado para ser contemplado, desvendado, observado sob diversos
ângulos e, de volta ao conceito de estesia, Martas Soares definitivamente
propõe algo a mais do que uma obra facilmente assistida como um espetáculo de
dança.
O público foi
colocado como assistindo a um filme antigo. O corpo estranhou a lentidão. Foi
incômodo e desconfortável fisicamente, visto que o corpo sente falta dos
excessos, das múltiplas imagens e do barulho intermitente já adaptados em nossas
vidas. Tudo é muito rápido e não se pode perder tempo. E em termos culturais,
todos estão sempre prevenidos, mas ao mesmo tempo, cada vez mais impacientes. Talvez,
se tivesse sido realizado como uma intervenção em uma área de convivência do
SESC, não teria incomodado tanto a alguns presentes, visto que cada um
dedicaria o tempo que achasse necessário para contemplação da obra.
(---Fio de Meada, de Gleidson Vigne - Balé da Cidade de São Paulo)
Uma pausa para
o café e foi a vez do Balé da Cidade de São Paulo estrear seus três novos
trabalhos. O Programa Brasileiros iniciou
com a obra de Gleidson Vigne, ---Fio da
Meada, levantou-se a cortina e logo identificou-se o que seria o cerne da
composição: um espetáculo plasticamente belo, com iluminação, cenário e
figurinos que impressionaram o público que lotou o teatro Paulo Autran.
Diferentemente de Marta Soares, neste há dança, muita dança, mas falta
densidade. Há coreografias muito bem executadas, mas permanece na superfície,
na borda e nem se quer o release foi capaz de aprofundar a temática proposta.
Uma pena.
O segundo trabalho,
Árvore do Esquecimento, de Jorge
Garcia, teve inspiração em suas raízes populares. Pernambucano, Garcia propôs
ao elenco uma releitura do livro e documentário Pedra da Memória, de Renata Amaral, resgatando memórias ancestrais
com influências das festas populares, da descendência africana e da história do
Brasil. Um trabalho indigesto, com trilha sonora que incomoda pelo barulho
intermitente, tem seu potencial justamente na relação destes elementos. Um
gramofone de cenário grita lá no fundo da sua alma enquanto assiste a
personagens bem caracterizados e com movimentação bastante peculiar. Tão
peculiar que pareceu não encaixar tão bem nos corpos dos intérpretes. Com
exceção do intérprete solista que inicia a obra, as raízes populares, as
referências da terra e do chão estavam lá, mas era possível identificar ainda
nos corpos dos artistas as bases clássicas e contemporâneas. Ainda assim, esse
diálogo entre linguagens parece ser algo bastante potente no cenário atual da
dança contemporânea.
(Árvore do Esquecimento, de Jorge Garcia - Balé da Cidade de São Paulo)
Por fim, Cenas a 37, de Alex Soares, revisitou a
obra Cenas de Família, de 1978, do
próprio Balé da Cidade. Após três décadas, como estariam aqueles personagens,
com seus problemas e conflitos, após a morte de um dos membros da família? Soares
propõe uma atmosfera cinematográfica e constrói o espetáculo como em um drama clássico
do cinema. Cenários e figurinos auxiliam nesta construção cênica que traz as
memórias e o luto como tema central. Corpos que caem pela morte do outro, mas
são constantemente reerguidos; um ente querido, hoje distante, imerso a uma
bolha de ar, intocável, impassível, inalcançável; o envelhecimento e a
consciência da realidade, como em um espelho que reflete sua história. Enfim,
foram muitas as reflexões, embora, por alguns momentos, parece que a construção
era interrompida por um novo disparador na construção dessas memórias.
(Cenas A37, de Alex Soares - Balé da Cidade de São Paulo)
Volto então ao
conceito de Estesia não como um amontoado de estímulos, mas como uma
sensação articulada e coerente que também origina o conceito de Estética,
aptidão para compreender as sensações causadas pela percepção do belo e de Anestesia,
a vedação dos sentidos. E foi entre sensações diversas, do cansaço físico a
contemplação da plasticidade, da reflexão a ausência dela, do incômodo corporal
ao pleno conforto de uma assistir a uma obra mais leve, da dança a não dança,
que o público pôde retornar aos seus lares certos de que, independentemente de
qualquer juízo de valor, tiveram contato com distintas obras de arte
contemporânea.
Referências:
Referências:
KATZ, H.;
GREINER, C. A
natureza cultural do corpo, in Revista Fronteiras,
vol. 3, n.2, p.65-75. Rio Grande do Sul, 2001.