quinta-feira, 2 de junho de 2016

Quanto se desvia das bordas de um aquário


Por Igor Gasparini

A obra "Quanto se dependem as partes", do Coletivo O12, estreou na última sexta, dia 27 de maio, na pedreira desativada da cidade de Votorantim, município em que o núcleo é residente e desenvolve projetos artísticos no Parque do Matão. A estreia foi uma das ações da 4ª edição do “Dança na Pedreira”, projeto contemplado pelo Proac da Secretaria de Estado da Cultura e que teve mais uma vez o objetivo de democratizar o espaço público.



Há quase 10 anos, o coletivo busca refletir artisticamente sobre o desenvolvimento dos sistemas vivos, partindo do ponto de vista evolutivo, e em busca de autonomia, capacidade que os sistemas são capazes de desenvolver. Inspirados pelos conceitos presentes na obra de Jorge Albuquerque Vieira, este último trabalho traz à luz reflexões sobre a vida, explorando a co-dependência como condição de autonomia em sistemas vivos.

O fluxo contínuo de existência é interpretado pelos artistas por meio de uma movimentação rasteira que permanece constantemente pelo chão. Durante toda a obra, o elenco continua se deslocando pelo espaço em um jogo que versa pela imprevisibilidade dos encontros. Ou porque não desencontros, ajustes, dependência, conflitos, mudança de percurso, trombadas, acalento, autonomia.

Como peixes em constante movimento, com seus braços que muito se assemelham a guelras, os artistas vão desviando dos limites do palco como animais que contornam as bordas de um aquário. O assunto principal do trabalho: os sistemas vivos e suas inter-relações está dado, mas longe de propor uma obra de fácil leitura. Os encontros vão se estabelecendo e gerando novas camadas de relação, mas se engana o espectador incauto que foi à espera de assistir a um espetáculo de dança, ao menos daquela dança a que se está acostumado a ver. Ainda que não haja sequências coreográficas delimitadas, o jogo de corpo proposto por si só já se configura como dança, visto que apenas corpos treinados para trabalhar com esta linguagem seriam capazes de desenvolver por 1 hora um fluxo de deslocamento em nível baixo com tamanha propriedade. 

A própria natureza do local se mistura com a proposta da obra e a pedreira constrói uma imagem bastante poderosa em que os animais-artistas estão inseridos. E vale ressaltar a intenção do coletivo, desde 2011, em democratizar este espaço abandonado com ações artísticas gratuitas a quem possa interessar. Ainda que a apropriação da pedreira pelos munícipes não tenha se concretizado em outras ações como desejam, o coletivo O12 continua sua busca por tornar visível tal espaço público, na tentativa de transformá-lo de fato em um local de convivência e compartilhamento de ações artísticas, pedagógicas e políticas. 

Enquanto o trabalho seguia seu curso, outras reflexões surgiam e muitas imagens eram criadas: animais parasitas, plantas sanguessugas, seres em que sua existência depende justamente de hospedeiros para se abrigar. E a partir disso, o quanto dependemos uns dos outros para existirmos? Simbolicamente, o quanto nos alojamos uns aos outros para alcançar objetivos individuais ou coletivos? O quanto desviamos de situações, assim como peixes que contornam as bordas de um aquário?

Tais reflexões se tornaram possíveis a partir de uma obra que não lhe bombardeia com excessos de temas, propostas, sequências coreografadas, movimentos e mais movimentos. O simples esgotamento de um único assunto permite que cada espectador pare por minutos, entre praticamente em um estado de transe reflexivo, e contemple uma obra sobre a vida. Confesso que é necessário paciência, visto que o corpo estranha a ausência de estímulos diversos constantes. Imersos em uma realidade de excessos, consequência das tecnologias e dos ambientes online que modificaram diversos hábitos cognitivos, qualquer momento de pausa parece sinônimo de perda de tempo, gerando impaciência e intolerância nas relações. Havia pessoas inquietas na arquibancada, mexiam-se constantemente, se contorciam, um ou outro até desistiu de tal desafio e colocou-se a dormir recostado em ombro amigo. Mas esta é justamente outra das potentes contribuições desta obra: provocar no espectador um estado de contemplação-reflexão tão escasso nos dias de hoje.

Lembrei-me ainda das aulas que tive com o professor Jorge Albuquerque e no conceito de permanência explicado por ele, refletindo que o tempo de existência é identificado e interpretado apenas pela espécie humana. Os humanos são os únicos na natureza a, por exemplo, realizar suicídio. Dada a complexidade da psique, parte pode ser explicado pelas teorias psicanalíticas, mas, por outro lado, é possível olhar pelo conceito de permanência. No tempo de duração do ser e estar no mundo, somos os únicos que possuímos essa consciência do tempo; da passagem do mesmo ao longo dos anos; mas mais do que isso, da sensação de “perda de tempo”. Todas as coisas tendem a ser e, dessa forma, pensamos sempre em como permanecer no mundo. Aos poucos, vamos tentando construir nossa autonomia, nossa capacidade de desenvolver estratégias de permanência, e isso perpassa por algo essencial nas sociedades, a convivência, logo, a tolerância. 

E neste bumerangue de reflexões que me levavam para longe, mas me traziam de volta, o tempo dilatado da obra foi preenchido lentamente por novas camadas de interação entre os intérpretes, pela trilha que mudava pouco, mas crescia constantemente, pelas alterações cênicas, pela água que começou a escorrer pelo palco, pelas vibrações causadas pela trilha sonora. E aquela sensação de peixes no aquário voltou à tona, muito embora em outro nível de associação, em uma escolha duplamente acertada justamente por ser a água o elemento escolhido, visto que sem ela não há vida. 

À luz então cresceu...
Aos olhos do público inclusive...
Os barulhos na trilha sonora se tornaram ainda mais fortes...
O chão tremeu...
A plataforma tomada por água vibrou...
E os nossos peixes-artistas continuaram a nadar, constantemente, como se nada afetasse sua simples ambição de permanecer em movimento, de permanecer vivo. 




Reflexões livres de um jornalista-artista-professor-intérprete-pisciano que teve a oportunidade de ter aulas com o professor Jorge Albuquerque e que contou com contribuições reflexivas dos também artistas Mayara Rosa, Marcos Werneck e Bruna Sant'Anna.